sábado, 6 de outubro de 2012

A razão por que nós praticamos meditação

(THRANGU RINPOCHE NO RIO DE JANEIRO EM 1991-2, FOTO DE R. SAMUEL)



A razão por que nós praticamos meditação

Por Sua Eminência Thrangu Rinpoche

(Trad. Christina Pinheiro)

Quando o Budismo começou a se expandir na América, a linhagem Kagyu estava na vanguarda ao enviar lamas para a região. Entre esses lamas estavam os três grandes pais do Dharma na América: Sua Santidade Gyalwa Karmapa, Sua Eminência Kalu Rinpoche e o Vidyadhara Chogyam Trungpa Rinpoche. Infelizmente nos anos 80 perdemos esses grandes seres mas, na seqüência, vários lamas notáveis da linhagem surgiram para ocupar esses lugares e trazer grande benefício aos seres sencientes. Entre os primeiros que vieram estava o Muito Venerável Khenchen Thrangu Rinpoche, abade por indicação de Sua Santidade Karmapa do Monastério de Rumtek, no Sikkim. Ele é também o abade de seus próprios monastérios no Nepal, Índia e Tibet e, por indicação de Chogyam Trungpa Rinpoche, de Gampo Abbey, na Nova Escócia, Canadá. Além disse, ele tem sido muito bom e generoso para com os estudantes ocidentais, ensinando o Dharma extensivamente em retiros e seminários por todo o mundo. Rinpoche ensinou pela primeira vez em Seattle em maio de 1996. Esta é uma transcrição de seus ensinamentos dados na noite de 24 de maio.


"Eu gostaria de começar dando boas-vindas a todos os que estão aqui esta noite. Eu entendo que vocês tenham vindo por causa de um sincero interesse e desejo de praticar o verdadeiro Dharma, e também por respeito a meus ensinamentos. Isso é ótimo para mim e agradeço a vocês. Eu me considero afortunado por ter esta oportunidade de criar uma conexão com vocês. Para começar, gostaria de recitar uma tradicional súplica aos professores da minha linhagem e convido vocês a me acompanhar com uma atitude de confiança e devoção."

(Cantos)
"A essência do Buddhadharma, os ensinamentos do Buddha, é a prática. E quando falamos em prática, nós nos referimos à prática de meditação, que pode ser a meditação conhecida como tranqüilidade ou aquela conhecida como insight. Mas, seja qual for o caso, ela deve ser implementada com a prática. Nós praticamos meditação para atingir a felicidade. Isto significa estados de felicidade a curto e a longo prazos. Com relação à felicidade a curto prazo, quando falamos em felicidade, normalmente nos referimos a uma ou duas coisas, sendo que uma é o prazer físico e a outra, o prazer mental. Mas se vocês olharem para qualquer uma dessas agradáveis experiências, a raiz dela deve ser uma mente em paz, uma mente livre de sofrimento. Porque se suas mentes estiverem infelizes e sem tranqüilidade ou paz, então não importa quanto prazer físico vocês experimentem que ele não terá a forma da felicidade por si só. Por outro lado, mesmo que lhes faltem as circunstâncias físicas ideais de riqueza ou qualquer outra, se suas mentes estiverem em paz, vocês ficarão felizes de qualquer maneira.
Então, nós praticamos meditação em parte para obter o benefício a curto prazo de um estado de felicidade mental e paz. Mas a razão pela qual a meditação ajuda é que, normalmente, nós temos uma grande quantidade de pensamentos, ou muitos tipos diferentes de pensamentos que cruzam nossas mentes. Alguns desses pensamentos são agradáveis, até mesmo prazerosos. Alguns deles porém, são desagradáveis, agitados e preocupantes. Se vocês examinarem de vez em quando os pensamentos presentes em suas mentes, verão que os pensamentos agradáveis são comparativamente poucos, e os pensamentos desagradáveis, muitos – o que significa que enquanto suas mentes forem governadas ou controladas pelos pensamentos que surgem, vocês serão bastante infelizes. Então, para ganhar o controle desse processo, nós começamos com a prática da meditação de tranqüilidade, que produz um estado básico de alegria e paz na mente do praticante.
Um exemplo disso é o grande iogue tibetano Jetsun Milarepa, que viveu em condições da austeridade extrema. Ele viveu em solidão absoluta, em cavernas e montanhas isoladas. Suas roupas eram muito pobres, ele não tinha roupas boas. A comida dele não era nem suculenta nem gostosa. Na verdade, durante muitos anos ele se manteve só com sopa de urtiga, e a conseqüência foi ficar extremamente magro, quase emaciado. Agora, se vocês considerarem apenas as circunstâncias externas, o isolamento e a pobreza em que ele viveu, pensariam que ele foi infeliz. Mas, como podemos verificar pelas muitas canções que compôs, e porque sua mente vivia fundamentalmente em paz, a experiência dele foi de constante e crescente deleite. Suas canções expressam um estado supremo de alegria ou êxtase. Ele via todo lugar por onde andava, não importava o quão isolado ou austero fosse o ambiente, como belo, e vivia uma vida de austeridade máxima de modo extremamente agradável.
Na realidade, os benefícios a curto prazo da meditação são mais que apenas a paz da mente, porque nossa saúde física também depende, em grande parte, do nosso estado mental. Assim, se cultivarem esse estado de satisfação e paz mental, vocês tenderão a não ficar doentes, e a se curarem facilmente quando e se ficarem doentes. A razão para isso é que uma das condições básicas que provocam estados de doença é a agitação mental, que produz uma agitação correspondente ou uma perturbação dos canais e energias do corpo. Esta gera novas doenças, que vocês ainda não tinham, e também impede a cura de doenças antigas. A agitação dos canais e ares ou energias também impede o benefício que poderia ser obtido com o tratamento médico. Se praticarem meditação, quando suas mentes se acalmarem, os canais e energias que circulam voltam ao seu funcionamento normal, vocês não terão tendência a ficar doentes ou se tornarão capazes de curar qualquer doença que tenham anteriormente. Podemos também ver um exemplo disso na vida de Jetsun Milarepa, que viveu em meio a extrema austeridade seja no local onde morou, seja nas roupas que usava, seja na comida que comia, por um longo tempo durante a parte inicial de sua vida. Ainda assim isso não prejudicou sua saúde, porque ele conseguiu viver uma vida longa, foi extremamente forte e jovial até o fim, o que indica que, através da correta prática de meditação, a alegria e a paz mental alcançadas acalmam e corrigem o funcionando dos canais e energias, dando lugar à cura e à prevenção das doenças.
O benefício a longo prazo ou final da prática de meditação é se tornar livre de todo sofrimento, o que significa já não ter que experimentar os sofrimentos do nascimento, do envelhecimento, da doença e da morte. Esta realização da liberdade é chamada, na linguagem comum a todas as tradições budistas, budeidade, ou estado de Buddha, e particularmente na terminologia do vajrayana, a realização suprema, ou siddhi supremo. De qualquer forma, a raiz ou causa básica dessa realização é a prática de meditação. Isso acontece porque geralmente temos muitos pensamentos cruzando a mente, alguns benéficos – como os pensamentos de amor, compaixão, alegria pela felicidade de outros, e assim por diante - e muitos que são negativos – como os pensamentos de apego, aversão, ciúmes, competitividade, e assim por diante. Comparativamente há menos pensamentos do primeiro tipo e mais do segundo tipo, porque temos hábitos arraigados que vêm se acumulando em nós desde tempos sem começo. E só removendo esses hábitos de negatividade podemos nos libertar do sofrimento.
Não se pode acabar com essas aflições mentais, ou kleshas, simplesmente dizendo a si mesmo: ‘Eu não vou mais gerar aflição mental alguma’, porque não se tem a liberdade de mente necessária ou o controle sobre as kleshas. Para abandoná-las, vocês precisam na verdade alcançar essa libertação, que começa, segundo o caminho comum, com o cultivo da tranqüilidade. Agora, quando se começa a meditar, quando se começa a praticar a meditação básica da tranqüilidade, pode-se achar que a mente não vai ficar quieta nem um momento. Mas isso não é permanente. Isso vai mudar à medida que se pratica, e vocês eventualmente vão conseguir deixar a mente em repouso, e nesse ponto a evidente perturbação dessas aflições mentais ou kleshas será aliviada. Em cima disso, vocês podem aplicar a segunda técnica, que é chamada de insight, que consiste em aprender a reconhecer e experimentar diretamente a natureza de suas próprias mentes. Essa natureza é chamada de vacuidade. Quando se reconhece essa natureza e se descansa nesse estado, todas as kleshas, todas as aflições mentais que surgem se dissolvem nessa vacuidade, e já não há mais aflições. De maneira que a liberdade, ou o resultado, que é chamado de estado de Buddha, depende da erradicação dessas aflições mentais, e isso depende da prática de meditação.
As práticas de tranqüilidade e insight são o caminho geral comum a ambos os caminhos de sutra e tantra. No contexto específico que é particular ao vajrayana, as técnicas principais são chamadas de fase de geração e fase de conclusão. Estas duas técnicas são extremamente poderosas e eficazes. A fase de geração se refere à visualização de, por exemplo, uma forma de um guru da linhagem, uma forma de uma deidade ou yidam ou uma forma de um protetor do Dharma. Inicialmente quando se vê essa técnica pela primeira vez, não é incomum que alguns novatos pensem: ‘Para que isso?’ Bem, o fato é que sustentamos e confirmamos nossa ignorância, nosso sofrimento e nossas kleshas através da geração constante de projeções impuras ou aparências impuras que compõem nossa experiência do samsara. Para transcender esse processo, temos que transcender essas projeções de impureza com projeções puras baseadas na iconografia do yidam, do dharmapala, e assim por diante. Quando se começa a experimentar o mundo como a mandala da deidade e todos os seres como a presença da deidade, gradualmente vocês praticam o abandono das aflições mentais, o abandono das projeções impuras, e criam o ambiente para a manifestação natural de sua própria sabedoria inata.
Tudo isto acontece aos poucos através dessa prática da fase de geração. As deidades usadas podem variar na aparência. Algumas são pacíficas e outras são iradas. Em geral, a iconografia das deidades iradas mostra o poder inato da sabedoria, e a das deidades pacíficas, as qualidades de bondade e compaixão. Também há deidades masculinas e deidades femininas. As deidades masculinas encarnam o método ou compaixão, e as femininas, a inteligência ou sabedoria.

Por isso é apropriado executar essas práticas de meditação com as deidades. E porque essas práticas são tão predominantes em nossa tradição, se vocês entrarem em um templo ou um local de prática vajrayana, provavelmente verão muitas imagens de deidades - deidades pacíficas, deidades iradas e deidades extraordinariamente iradas. E verão diversos santuários com algumas oferendas bastante excêntricas. Inicialmente, se não estão acostumados com isso, vocês poderiam pensar: ‘O que é isso tudo?’ E também: ‘Bom, as práticas básicas de tranqüilidade e insight fazem muito sentido e são muito interessantes; já todas essas deidades, todos esses rituais e esses instrumentos musicais excêntricos não são na verdade nada interessantes’. No entanto, cada um e todos os aspectos da iconografia, e cada um e todos os implementos encontrados em um santuário estão lá por um motivo específico. O motivo é porque precisamos nos treinar para substituir a projeção impura ou negativa por uma projeção ou experiência pura. E isso não é uma coisa que se possa fingir, não é possível simplesmente convencer-se disso, porque vocês estarão tentando substituir algo mais profundo que um conceito. Ë mais parecido com um sentimento. De maneira que na técnica usada para fazer a substituição, tem que ser gerado muito sentimento ou experiência da energia de pureza, e para gerar isso usamos representações físicas de oferendas, usamos instrumentos musicais para inspirar o sentimento de pureza, e assim por diante. Em resumo, todos esses instrumentos são úteis para gerar a experiência de pureza.
Essa é a primeira das duas técnicas da prática vajrayana, a fase de geração. A segunda técnica é chamada a fase de conclusão, e consiste em uma variedade de técnicas relacionadas das quais talvez as mais importantes e mais conhecidas são mahamudra e dzogchen ou ‘A Grande Perfeição’. Às vezes dzogchen aparece com a mais importante, e em outras épocas mahamudra aparece como a mais importante, e o resultado é que as pessoas ficam um pouco confusas e inseguras sobre qual das tradições seguir. A essência das práticas e seu resultado são, basicamente, os mesmos. Na verdade, cada uma delas tem uma variedade de técnicas. Por exemplo, na prática de mahamudra, há muitos métodos que podem ser usados, como candali (veja nota de rodapé) e assim sucessivamente, e na prática de dzogchen também há muitos métodos, como o cultivo da pureza primordial, da presença espontânea, e assim por diante. Mas, basicamente, a prática de mahamudra sempre é apresentada como uma orientação ou introdução para sua mente, e a prática de dzogchen, como uma orientação ou introdução à sua mente. O que significa que a raiz delas não é diferente, e a prática seja de mahamudra ou dzogchen traz grande benefício. Encontramos em ‘A Aspiração de Mahamudra’, do terceiro Gyalwa Karmapa, o grande Rangjung Dorje, a seguinte estrofe:
’Não existe, e não foi visto, nem mesmo pelos Vitoriosos.
Não é não-existente, é a base de todo o samsara e o nirvana.
Isto não é contraditório, mas é o grande Caminho do Meio.
Possa eu chegar a ver a natureza que está além da elaboração.’
Isso é da tradição mahamudra. Em ‘A Aspiração para a Realização da Natureza da Grande Perfeição’, do onisciente Jigme Lingpa, uma liturgia de aspiração da tradição dzogchen, encontramos a seguinte estrofe:
’Não existe, não foi visto, nem mesmo pelos Vitoriosos.
Não é não-existente, é a base de todo o samsara e o nirvana.
Não é contraditório, é o grande Caminho do Meio.
Possa eu vir a reconhecer dzogpa chenpo, a natureza da base.’
Em outras palavras, estas duas tradições são completamente voltadas ao reconhecimento da mesma natureza.
A felicidade a curto prazo e a felicidade definitiva dependem da prática de meditação que, do ponto de vista comum aos sutras (o ponto de vista em comum de todas as tradições do budismo), é a tranqüilidade e o insight, e do ponto de vista incomum do vajrayana é a fase de geração e a fase de conclusão.
A meditação, no entanto, depende em parte da geração de bondade e compaixão. Isso é verdadeiro em qualquer meditação, mas é mais especialmente verdadeiro na meditação vajrayana. O motivo é que as práticas específicas de vajrayana - a visualização de deidades ou meditação mahamudra e assim por diante - dependem da presença de uma motivação pura por parte do praticante desde o primeiro momento. Se essa motivação pura ou motivação genuína não está presente – e, como somos pessoas comuns, é bastante possível que não esteja presente – pouco benefício haverá. Por isso, praticantes de vajrayana estão sempre praticando a motivação, e tentando desenvolver a motivação que é conhecida como a mente desperta, ou bodhicitta.

Como uma indicação disso, se vocês observarem as liturgias usadas na prática vajrayana, verão que suas formas longas e extensas sempre começam com um esclarecimento sobre ou uma meditação em bodhicitta, e que até mesmo as liturgias curtas e as curtíssimas sempre começam com uma meditação em bodhicitta, bondade e compaixão, porque esse tipo de motivação é necessário para toda a meditação, mas especialmente para a prática vajrayana.
O único significado real que podemos dar ao nosso nascimento neste planeta - e particularmente tendo nascido como seres humanos neste planeta - e o único resultado realmente significativo que podemos ter em nossas vidas é ajudar o mundo: ajudar nossos amigos, ajudar todos os seres neste planeta o quanto pudermos. E se dedicarmos nossas vidas ou apenas parte significativa de nossas vidas a destruir os outros ou a prejudicar os outros, se fizermos isso, nossas vidas terão sido sem sentido. Se entenderem que o único objetivo real de uma vida humana é ajudar os outros, beneficiar os outros, melhorar o mundo, então vocês têm que entender que a base de não prejudicar os outros mas beneficiá-los é a intenção de não prejudicar os outros e a intenção de beneficiá-los.
A principal causa de ser ter uma intenção estável ou uma motivação estável é cultivar verdadeiramente o amor e a compaixão pelos outros. O que significa que, quando se virem cheios de má vontade e agressividade – e isso não é anormal – , vocês têm que reconhecer isso, ver claramente o que está acontecendo e deixar isso ir embora. Também pode ser que vocês não tenham má vontade ou agressividade, e tenham o desejo de melhorar as coisas, mas pensem apenas em si mesmos, pensem apenas em se ajudar ou se beneficiar. Quando acontece isso, vocês têm que lembrar que a raiz desse tipo de mentalidade - bastante mesquinha, limitada e estreita – é o desejo de vitória para si mesmo às custas do sofrimento e da perda de outros. Nesse caso, vocês têm que expandir gradualmente sua solidariedade aos outros, de modo que o cultivo de bodhicitta ou altruísmo em geral como motivação seja uma maneira essencial de dar um sentido às suas vidas. A importância do amor e da compaixão não é uma idéia apenas do budismo. Todo mundo em todos os lugares fala da importância do amor e da compaixão. Não há ninguém que diga que o amor e a compaixão sejam ruins e que devemos nos livrar deles. Existe, no entanto, um elemento incomum no método ou na abordagem deles dentro do budismo. De maneira geral, quando pensamos em compaixão, pensamos em uma solidariedade ou empatia natural ou espontânea que sentimos quando vemos o sofrimento de alguém. Geralmente pensamos em compaixão como um estado de dor, de tristeza, porque vemos o sofrimento de alguém e vemos o que está provocando o sofrimento e não podemos fazer nada para acabar com a causa desse sofrimento e, conseqüentemente, com o sofrimento em si. Assim, antes de vocês gerarem compaixão, havia uma pessoa infeliz, e depois que vocês geraram compaixão, há duas pessoas infelizes. Isso realmente acontece.

A abordagem (que a tradição budista usa) para a compaixão é um pouco diferente, porque se baseia no reconhecimento de que, possam vocês ou não beneficiar um ser ou uma pessoa na situação ou nas circunstâncias imediatas, ainda assim podem gerar a base para o benefício definitivo. A confiança nisso remove a frustração ou a tristeza que de outra maneira afligem a compaixão comum. E quando a compaixão é cultivada dessa maneira, é vivenciada com alegria e não com tristeza.
A maneira como cultivamos a compaixão é chamada de compaixão imensurável. Para ser mais preciso, há quatro aspectos do que poderíamos de maneira geral chamar de compaixão, e se chamam os quatro imensuráveis. Normalmente quando pensamos em algo imensurável nos referimos a algo imensamente vasto. Aqui, a conotação básica do termo não é vastidão, mas imparcialidade. Falamos em compaixão imensurável como uma compaixão que não vai ajudar uma pessoa às custas do sofrimento de outra. É uma compaixão que se sente igualmente por todos os seres. A base da geração dessa compaixão tão imparcial é o reconhecimento do fato de que todos os seres, sem exceção, querem e não querem as mesmas coisas. Todos os seres, sem exceção, querem ser felizes e querem evitar o sofrimento. Não há ser algum em lugar algum que queira realmente sofrer. E se entenderem isso, e porque entendem isso, vocês terão um desejo intenso de que todos os seres se libertem do sofrimento. Também não há ser algum em lugar algum que não queira ser feliz; e se vocês entenderem isso, e porque entendem isso, terão um desejo imenso de que todos os seres realmente alcancem a felicidade que almejam. Mas, como a experiência da felicidade e a libertação do sofrimento dependem da geração de causas, suas aspirações têm que ser não apenas a felicidade, mas também as causas de felicidade, que eles não apenas estejam livres do sofrimento, mas das causas do sofrimento.
As causas do sofrimento são fundamentalmente a presença em nossas mentes de aflições - ignorância, apego, aversão, ciúmes, arrogância, e assim por diante - e é por causa da existência disso que sofremos. Quando se reconhece que há uma maneira de transcender essas causas do sofrimento - fundamentalmente, através da erradicação dessas causas pela prática da meditação, que pode ou não ocorrer de imediato, mas é um processo definitivo e executável – através da confiança, depois, do amor – desejando que os seres sejam felizes -, e da compaixão para desejar que os seres se libertem do sofrimento, não é inútil nem frustrante. O amor e a compaixão ilimitados geram uma alegria ilimitada que se baseia na confiança de que vocês podem realmente ajudar os seres a se libertar.
O amor ilimitado é a aspiração de que os seres tenham felicidade e as causas da felicidade. A compaixão ilimitada ou compaixão imensurável é a aspiração de que os seres sejam libertados do sofrimento e das causas do sofrimento. A confiança verdadeira e o contentamento que vêm da confiança de que vocês podem fazer isso trazem uma alegria ilimitada. E porque tudo isso é ilimitado ou imensurável ou imparcial, existe uma qualidade comum que é a eqüanimidade. O que significa que se isso tudo for cultivado de maneira correta, vocês não terão compaixão por um ser e não por outro, e assim por diante. Normalmente, quando experimentamos essas qualidades, claro que elas são parciais; são qualquer coisa menos imparciais. Para erradicar a fixação que causa a experiência da compaixão em relação a alguns e não a outros, vocês podem praticar o cultivo de eqüanimidade reconhecendo que todos os seres desejam a mesma coisa e desejam evitar a mesma coisa, e fazendo isso poderão aumentar muito, intensificar sua bondade e compaixão.
Esta foi uma breve introdução à prática de meditação, e como treinar e gerar compaixão. Se vocês tiverem alguma pergunta, por favor podem fazer."
Pergunta: "Rinpoche, o senhor poderia falar um pouco sobre a diferença entre projeção pura e projeção impura, e em particular, de onde vêm as projeções puras?"
Rinpoche: "Em primeiro lugar, nós experimentamos projeções impuras por causa da presença, em nossas mentes, de kleshas ou aflições mentais. Porque temos kleshas, vemos o amigo e o inimigo – a quem nos apegamos ou quem nos provoca aversão -, nós experimentamos contentamento e desgosto e assim por diante. E de todos essas maneiras que experimentamos o mundo – todas elas são fundamentalmente mescladas com dissabor.
O que é chamado de aspecto puro ou projeção pura está baseado na experiência da verdadeira natureza ou pureza essencial disso que, na confusão, nós experimentamos como cinco tipos de aflições mentais, ou cinco kleshas. A verdadeira natureza dessas cinco kleshas é o que é chamado de cinco sabedorias. Por exemplo, quando vocês abandonarem a fixação, a obsessão do ego, a natureza fundamental da maneira pela qual experimentarem isso é a uniformidade, uma ausência de preferência ou parcialidade, que é chamada de sabedoria da uniformidade. E, quando reconhecerem a natureza de todas as coisas, o reconhecimento que penetra ou preenche todas as suas experiências é chamado de sabedoria do dharmadhatu. E assim por diante.
Quando experimentarem as cinco sabedorias em vez das cinco kleshas ou cinco aflições mentais, em vez de projetar toda a impureza projetada na base da experiência das kleshas, vocês projetarão pureza, ou vocês experimentarão a pureza que é a manifestação verdadeira destas cinco sabedorias como reinos, como formas de Buddhas, e isso é chamado de visões puras, experimentadas pelos bodhisattvas e assim sucessivamente. Agora, para se chegar a isso, para se cultivar a experiência dessas sabedorias e as experiências externas que andam junto com a experiência dessas sabedorias, nós meditamos nos corpos desses Buddhas, nos reinos, palácios e assim por diante. Ao gerar clareza nessas aparências visualizadas e estabilizá-las gradualmente nós transformamos a maneira pela qual experimentamos o mundo."
Pergunta: "Quando se pratica compaixão, há a prática de tonglen, que consiste em mandar e receber, que retira o sofrimento de todos os seres sencientes e dá a eles a felicidade e mérito que nós temos. Nessa prática - eu pratiquei isso antes – parece que vai tudo bem por um tempo, mas aí surge um sensação sutil de ‘EU’ que entra em silêncio e diz: ‘Eu não quero realmente retirar o sofrimento’, ou então, ‘Eu não posso lidar com tanta gente com câncer, não posso assumir tudo sozinho’. E perco um pouco de coragem de praticar. Será que o senhor poderia nos esclarecer essa prática, como superar esses obstáculos e desenvolver realmente a mente heróica?"
Rinpoche: "O que você diz é muito verdadeiro, especialmente quando se começa essa prática. Na verdade, não há problema em se sentir dessa maneira. Embora haja uma qualidade de fingimento sobre o quanto vocês estariam realmente prontos para assumir o sofrimento dos outros no princípio, ainda há benefício na prática, porque antes de começarem essa prática, vocês provavelmente eram completamente egoístas. E até mesmo uma tentativa de fingir altruísmo é uma tremenda melhoria. Mas não se permanece insincero assim, porque eventualmente o hábito começa a se aprofundar e a se contrapor ao hábito do egoísmo.
Mas se, quando começarem a praticar tonglen, vocês já tiverem cem por cento de preocupação com o bem-estar dos outros e nenhuma preocupação com o seu próprio bem-estar, não precisariam praticar tonglen. De maneira que foi planejado para funcionar com um praticante que está começando de um ponto de egoísmo para levá-lo ao ponto de se preocupar com os outros. Aos poucos, usando a prática, vocês cultivarão de verdade o desejo sincero de tirar o sofrimento de outros e trazê-lo para vocês; e cultivarão um amor e uma compaixão reais pelos outros. Mas, por outro lado, vocês não fazem a prática para serem realmente capazes de, naquele momento, assumir o sofrimento de outros; vocês estão fazendo isso na verdade para treinar a mente. E ao treinar a mente e desenvolver a motivação e o desejo verdadeiros de libertar os outros do sofrimento, o resultado a longo prazo será a habilidade para dissipar o sofrimento dos outros diretamente."
Pergunta: "Rinpoche, o senhor disse que nós provavelmente não somos capazes - uma pessoa provavelmente não pode afetar diretamente ou remover a infelicidade a curto prazo ou o sofrimento de outra pessoa -, mas que podemos aprender a gerar a base da felicidade dos outros, a felicidade definitiva. O senhor poderia falar mais um pouco, por favor, sobre como uma pessoa pode gerar a base da felicidade definitiva para outra pessoa?"
Rinpoche: "Bem, a base direta para estabelecer outro ser em um estado de liberdade ou felicidade, felicidade a longo prazo ou definitiva, é ser capaz de mostrar a ele como se livrar das aflições mentais e ensinar como reconhecer e então abandonar as causas do sofrimento. E ao se fazer isso, vocês podem estabelecê-lo gradualmente na felicidade definitiva. Mas até mesmo em casos em que vocês não podem, por qualquer razão, fazer isso, ao ter a intenção de beneficiar aquele ser, quando estiverem completamente libertos, vocês poderão ajudá-lo de fato e gradualmente libertá-lo e protegê-lo."
Pergunta: "Rinpoche, o senhor pode falar um pouco mais sobre a prática de deixar-se ir, quando a mente está agitada, como descreveu, como é usado em mahamudra e dzogchen? Quando eu me sento para meditar, experimento minha mente em estado agitado. E sobre a prática de deixar-se ir. Gostaria de saber se o senhor pode falar um pouco mais sobre isso de um modo prático?"
Rinpoche: "De maneira geral, a abordagem principal das tradições de mahamudra e dzogchen é aplicada quando vocês estiverem olhando para a natureza de suas mentes. Já as kleshas ou aflições mentais são pensamentos, e pensamentos são a exibição natural da mente. Pensamentos podem ser agradáveis, neutros ou desagradáveis, eles podem ser positivos ou negativos, mas em todo caso, vocês lidam com qualquer tipo de pensamento que surge exatamente da mesma maneira. Vocês simplesmente olham diretamente para eles.
Olhar para o pensamento, olhar no pensamento, ou olhar para a natureza do pensamento, é bem diferente de uma análise. Vocês não tentam analisar o conteúdo do pensamento, nem tentam pensar no pensamento. Vocês só e simplesmente olham diretamente para ele. E quando olharem diretamente para um pensamento, vocês não acharão nada. Vocês podem pensar que não encontraram nada porque não souberam como olhar ou onde olhar, mas na verdade esta não é a razão. A razão, segundo o Buddha, é porque os pensamentos são vazios. E este é o significado básico de todos os vários ensinamentos sobre vacuidade que ele deu, como as Dezesseis Vacuidades, e assim por diante.
Para usar a raiva como um exemplo disso; se vocês ficam raivosos, e olham diretamente para a raiva - que não significa analisar os conteúdos dos pensamentos de raiva, mas olhar diretamente para aquele pensamento raivoso específico -, não encontrarão nada. E, naquele momento em que não acharem nada, a qualidade venenosa da raiva de alguma maneira desaparecerá ou se dissolverá. Suas mentes relaxarão, e vocês vão, pelo menos até certo ponto, ficar livres da raiva.
Vocês podem, neste momento, entender isto ou não, mas em todo o caso, terão a oportunidade de trabalhar com esta abordagem amanhã e depois de amanhã, e nos próximos dois dias pode ser que vocês experimentem um pouco disso.
Nós vamos concluir agora com uma breve dedicação. Mas eu também gostaria de agradecer a vocês por demonstrar grande interesse no Dharma, ao ouvir e fazer perguntas."

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Nota de rodapé: gtum-mo em tibetano significa feroz ou colérico e se refere a um tipo de calor psíquico gerado e experimentado em certas práticas meditativas do vajrayana. Esse calor serve para queimar todos os tipos de obstáculos e confusão. Está incluído nas Seis Doutrinas de Naropa, as Seis Doutrinas de Niguma e as Seis Doutrinas de Sukhasiddhi.


Nota: Nós agradecemos a Kagyu Shenpen Osel Choling em Seattle por nos permitir usar este ensinamento em nosso website e oferecê-lo a vocês. Este é um excerto do excelente relatório informativo do grupo (em inglês). Se vocês quiserem assinar ou receber mais informações sobre o relatório, por favor remeta a:
Shenpen Osel
4322 Burke Ave. N.
Seattle, WA 98103, USA
(1206) 632-1439

e-mail: itashi@worldnet.att.net
Nota: Nós agradecemos a Lee Miracle, que usou o ensinamento no webside de Sua Eminência Thrangu Rinpoche e nos autorizou a traduzir e a usar neste webside. Para mais informações, em inglês, sobre Rinpoche:
www.rinpoche.com
Que o mérito da tradução e da divulgação deste ensinamento possa beneficiar todos os seres sem exceção.


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