quinta-feira, 29 de julho de 2010

SUA SANTIDADE DALAI LAMA: O ENSINAMENTO LAM RIM


SUA SANTIDADE DALAI LAMA

O ENSINAMENTO LAM RIM





CAPÍTULO 1

O ENSINAMENTO

Há 2.500 anos, o Buda originou-se da meditação após alcançar a iluminação. O tema do seu primeiro ensinamento fora m as Quatro Verdades Nobres. A Primeira Verdade Nobre foi a do sofrimento, o fato de que a nossa felicidade é constantemente passageira. Tudo o que temos está sujeito à impermanência. Nada do que nós comumente pensamos ser real é permanente. A ignorância, o apego e a raiva são as causas do nosso inexorável sofrimento. Assim, a Segunda Verdade Nobre é compreender esta causa do sofrimento. Quando você elimina a raiz do sofrimento (as ilusões), alcança um estado de suspensão do sofrimento — a Terceira Verdade Nobre ou nirvana. A Quarta Verdade Nobre é que existe um caminho que leva à suspensão do sofrimento. Para alcançar este estado dentro da sua própria mente, você deve seguir um caminho.
Só após entendermos a lei do karma, ou da causa e efeito, seremos inspirados a embarcar no caminho para terminar com o sofrimento. Pensamentos e ações negativas produzem resultados e condições negativas, assim como pensamentos e ações positivas produzem resultados e condições positivas. Quando desenvolvermos uma profunda convicção na lei da causa e efeito, seremos capazes de perceber as causas e as condições dos nossos próprios sofrimentos. A nossa felicidade ou infelicidade atual não é nada mais nada menos do que a conseqüência das nossas ações anteriores. Os sofrimentos em si são tão óbvios que a nossa experiência comprova a existência deles. Conseqüentemente, desenvolvemos a percepção de que, se não desejamos o sofrimento, então devemos trabalhar para erradicarmos agora as suas causas. Compreendendo o sofrimento e as suas origens, podemos perceber a possibilidade de eliminarmos a ignorância, que é a causa básica do sofrimento, e podemos conceber um estado de suspensão, uma total suspensão desta ignorância e das ilusões induzidas por ela. Quando a nossa compreensão da suspensão for perfeita, desenvolveremos um desejo forte e espontâneo de atingir tal estado. O nosso entendimento deve ser tão profundo que abale todo o nosso ser e induza em nós um desejo espontâneo de obtê-lo. Uma vez que desenvolvemos este desejo espontâneo de alcançar a suspensão, desenvolve-se uma imensa admiração pelos seres que perceberam esta suspensão dentro de suas próprias mentes. O reconhecimento das realizações de Buda torna-se poderoso. Os beneflcios e a beleza dos seus ensinamentos tornam-se claros.
Este ensinamento das etapas do caminho para a iluminação veio da Índia para o Tibet. O Budismo só chegou ao Tibet no século VIII, mas no século IX a sua prática foi proscrita pelo rei Lang-dar-ma. Ele fechou os monastérios, que tinham sido os principais centros de ensinamentos, como os chineses o fazem hoje. A destruição do Budismo por Langdar-ma foi extensa, mas ainda era possível praticá-lo em regiões remotas e a tradição foi preservada. No século XI, surgiram confusões sobre a existência de duas abordagens para a prática dos ensinamentos. Havia o sutra, ou o caminho do estudo e da prática pelo qual se leva muitas vidas para alcançar a iluminação, e o tantra, as práticas secretas através das quais a iluminação pode ser alcançada até mesmo em uma única vida. No século XI, um monge indiano chamado Atisha ficou famoso pela sua capacidade de explicar os ensinamentos de Buda e por defendê-los em debates com filósofos não-budistas. Ele era capaz de juntar todas as diversas posições filosóficas budistas que se haviam desenvolvido através dos séculos, bem como os sistemas leigos e monásticos da prática. Ele era considerado, por todas as escolas filosóficas, um mestre não-partidário e autorizado.
Naquela época, o rei do Tibet ocidental, inspirado pela grande fé budista dos seus antepassados, leu muitos textos e descobriu o que ele pensou serem contradições entre os diferentes sistemas, especialmente no que se referia ao sutra e ao tantra. Naquela época, devido a um equívoco a respeito do papel da ética nos dois sistemas, muitos tibetanos pensavam que as práticas do sutra e do tantra não poderiam ser empreendidas pela mesma pessoa. Contudo, o rei tinha consciência de que, quando o Budismo chegou no Tibet no século VIII, os dois sistemas tinham coexistido pacificamente. O mestre indiano Shantarakshita havia difundido tanto a prática da disciplina monástica quanto as numerosas e compassivas práticas do sutra. Na mesma época, o grande iogue Padmasambhava estava difundindo as práticas do tantra e domando as forças malévolas que infestavam o Tibet. Estes dois mestres empreenderam juntos as práticas do Dharma, sem qualquer hostilidade entre eles. Percebendo que a India era a fonte da prática do sutra e do tantra, o rei enviou vinte estudantes inteligentes do Tibet para estudar na India, com a idéia de que eles retornariam e explicariam os ensinamentos para os tibetanos. Muitos deles morreram no caminho, mas dois voltaram e informaram ao rei que, na India, a prática do sutra e do tantra era empreendida sem quaisquer dificuldades. Encontraram o grande mestre Atisha no monastério de Vikramashila em Bengala. Esses estudantes achavam que Atisha era a pessoa que poderia ajudar o Tibet.
O rei saiu em busca de ouro suficiente para arcar com as despesas de convidar este mestre da Índia, mas foi capturado por um rei que era hostil ao Budismo. Foi-lhe dada a escolha entre a sua vida e a sua busca pelo Dharma. Quando ele se recusou a desistir da sua busca, foi aprisionado. O seu sobrinho tentou libertá-lo, mas o rei disse: “Você não precisa se preocupar comigo. Não desperdice uma única moeda de ouro com o meu resgate. Use todo o ouro para atrair Atisha da India.” O sobrinho não obedeceu ao seu tio e finalmente ofereceu o peso do rei em ouro como resgate. Porém, o raptor o recusou dizendo que o sobrinho havia trazido ouro igual apenas ao peso do corpo do seu tio, mas não o suficiente por sua cabeça. Recusou-se a soltar o prisioneiro até que ele trouxesse mais ouro. Então, o sobrinho contou ao seu tio o que tinha acontecido. “Se eu travar uma guerra para libertá-lo”, explicou o sobrinho, “haverá grande derramamento de sangue. Então, tentarei juntar o ouro pela sua cabeça. Por favor, reze para que eu seja bem-sucedido.” O seu tio respondeu: “É meu desejo trazer a luz do Dharma para o Tibet para clarear todas as dúvidas e contradições. Se o meu desejo for realizado, mesmo que eu precise morrer aqui, não terei nenhum arrependimento. Sou um homem velho; mais cedo ou mais tarde terei de morrer. Tive renascimentos durante muitas vidas, mas é pouco provável que eu tenha sido capaz de sacrificar a minha vida por amor ao Dharma. Hoje, foi-me concedida esta oportunidade. Portanto, informe ao Atisha que eu desisti da minha vida para que ele pudesse ser convidado ao Tibet e que o meu último desejo é que ele venha para o Tibet, difunda a mensagem de Buda e elucide os nossos mal-entendidos.” Ouvindo a determinação do seu tio, o sobrinho ficou muito emocionado. Com enorme tristeza, ele se despediu do seu tio.
O sobrinho enviou um grupo de tradutores tibetanos à Índia para procurar Atisha. Os seis companheiros, levando setecentas moedas de ouro, chegaram finalmente ao monastério de Atisha, onde foram levados para ver o abade. Embora não tivessem revelado o propósito da sua vinda, o abade lhes disse: “Não é que eu me sinta possessivo em relação a Atisha, mas existem muito poucos mestres como ele e, se ele deixar a India, haverá um grande perigo para o próprio Dharma e, portanto, para todo a população. A sua presença na Índia é muito importante.” O tradutor tibetano finalmente conseguiu ver Atisha e os seus olhos se encheram de lágrimas. Atisha observou isto e lhe falou: “Não se aflija. Sei do grande sacrifício feito pelo rei tibetano por minha causa. Estou considerando seriamente o seu pedido, mas sou um homem velho e também tenho a responsabilidade de tomar conta do monastérío.” Mas, finalmente, Atisha concordou em ir para o Tibet. Após a sua chegada no Tibet ocidental, o sobrinho do rei lhe solicitou que compusesse um texto que beneficiasse todo o ensinamento budista no Tibet. Ele nos deixou "A lâmpada no caminho para a iluminação", que condensa todos os caminhos essenciais de todo o corpo de ensinamentos em uma forma adequada às verdadeiras necessidades do povo tibetano.
No início do século XV, o mestre tibetano Tsong-kha-pa escreveu um livro chamado Lam Rim ou "As etapas do caminho para a iluminação". Ele aperfeiçoou a apresentação de Atisha e tornou estes ensinamentos integrados mais acessíveis para qualquer pessoa praticá-los. O Lam Rim é a base para o ensinamento contido neste livro.
Mostrando todas as etapas do caminho para a iluminação, o Lam Rim também mostra como todos os ensinamentos são essenciais — como o Dharma inclui tanto o sutra, o caminho comum, quanto o tantra, o caminho secreto. Embora, às vezes, estes ensinamentos possam parecer contraditórios, eles não têm contradição quando praticados apropriadamente em um processo gradual. Todos eles são importantes como guias para o caminho para a iluminação. Algumas pessoas pensam que podem realizar práticas esotéricas sem compreender os ensinamentos básicos budistas. Sem o fundamento apropriado do caminho comum, uma pessoa absolutamente não pode fazer nenhum progresso no tantra. Sem o desejo compassivo de obter a iluminação com o objetivo de conduzir todas as pessoas para a liberdade, o tantra torna-se apenas uma recitação de mantra. A prática tântrica estará limitada a tocar instrumentos como címbalos e cometas feitas com fêmur e a fazer muito barulho. A Perfeição da Sabedoria Sutra diz que a prática da generosidade, da ética, da paciência, do esforço, da concentração e da sabedoria é o único caminho, seja do sutra ou do tantra, que todos os Budas do passado atravessaram para a iluminação. Se você desiste dos aspectos comuns do caminho, é um grande erro.
Por isso, o grande mestre Tsong-kha-pa, o autor de "As etapas do caminho para a iluminação", aconselha que os praticantes busquem a orientação de um mestre espiritual experiente e se esforcem para perceber todos os ensinamentos de Buda como apropriados e relevantes para as suas práticas. Aqueles aspectos que não podem ser postos imediatamente em prática não devem ser abandonados. Ao contrário, peça interiormente para que você seja capaz de colocá-los em prática no futuro. Se você for capaz de fazer isso, então a sua perspectiva sobre os ensinamentos de Buda será muito profunda.
Para um praticante, todo o cânone budista é necessário e relevante. Quando um artista está pintando uma thangka (um pergaminho budista tibetano), deve avaliar a necessidade de todos os tipos de pintura. Porém, isso não é suficiente. Ele deve saber quando cada tipo de pintura é necessário, pintando primeiro o contorno e depois acrescentando as cores. É muito importante saber a verdadeira sequência delas. Do mesmo modo, nós precisamos saber da importância de todos os ensinamentos de Buda, bem como quando e como eles devem ser praticados. Quando estes fatores estão presentes, todos os obscurecimentos e dificuldades associados à sua prática serão naturalmente eliminados.
Quando falo sobre a prática do Dharma, não me refiro a deixar tudo para trás e partir para um retiro isolado. Quero dizer simplesmente que devemos integrar um nível elevado de consciência às nossas vidas diárias. Quer estejamos comendo, dormindo ou fazendo negócios, devemos constantemente verificar as nossas intenções, o nosso corpo, a nossa fala, a nossa mente e as nossas ações para descobrirmos até mesmo a mais sutil negatividade. Tente alinhar as suas atividades do dia-a-dia com uma motivação compassiva. Inspire os seus atos do corpo, da fala, e da mente com a sabedoria obtida ouvindo e praticando os ensinamentos. Porém, se alguém é capaz de abrir mão de tudo e de devotar a sua vida à prática, aquela pessoa é digna de admiração.
O estudo é como a luz que ilumina a escuridão da ignorância, e o conhecimento resultante é o bem supremo, porque não pode ser tirado nem mesmo pelo maior dos ladrões. O estudo é a arma que elimina o inimigo da ignorância. Também é o melhor amigo para nos guiar através de todos os nossos momentos de dificuldade. Tendo um coração bondoso e não decepcionando as pessoas, nós conquistamos verdadeiros amigos. Os amigos que fazemos quando temos poder, posição e influência são amigos baseados somente no nosso poder, influência e posição. Quando encontramos a má sorte e perdemos a nossa riqueza, esses pretensos amigos nos deixam para trás. O amigo infalível é o estudo dos ensinamentos. Este é um medicamento que não tem nenhum efeito colateral ou perigo. O conhecimento é como o grande exército que irá nos ajudar a esmagar as forças das nossas próprias falhas. Com este conhecimento, podemos nos proteger de cometer ações não-virtuosas. Fama, posição e riqueza podem resultar do conhecimento de uma pessoa; mas só o estudo e a prática dedicada pode remover a ilusão e trazer a felicidade duradoura da iluminação.
Sem o conhecimento dos ensinamentos, as realizações não se seguirão. Espera-se que os ensinamentos que recebemos sejam vivenciados. Quando treinamos um cavalo para uma corrida, devemos fazê-lo no mesmo tipo de pista do local onde a corrida acontecerá. Do mesmo modo, os tópicos que você estudou são os próprios ensinamentos que você deve colocar em prática. O estudo é realizado por amor à prática. Tsong-kha-pa diz que, se você for capaz de perceber os profundos e abrangentes sutras como conselhos pessoais, então você não terá quaisquer dificuldades em perceber os tantras e os seus comentários como conselhos pessoais a serem postos em prática no processo do caminho que conduz à iluminação. Isso nos protege da interpretação incorreta de que alguns conjuntos de ensinamentos não são necessários para a prática e que alguns são necessários apenas para realização escolástica.
Juntar as mãos e curvar a cabeça antes de receber os ensinamentos é uma maneira de se opor ao orgulho e à vaidade. As vezes, você vê pessoas que conhecem menos o Dharma do que você, mas que têm um grande senso de humildade e respeito. Como resultado do seu conhecimento do Dharma, você deve ser mais humilde do que a outra pessoa. Se não o for, então é você que é inferior àquela pessoa. Portanto, ao estudar, tente verificar o seu próprio estado de espírito e integrar o que você estuda na sua maneira de pensar. Se isso for feito, você irá atingir um estágio no qual será capaz de perceber algum tipo de efeito, alguma mudança ou impacto em sua mente. Isso é uma indicação de que você está fazendo progresso na sua prática e de que o objetivo do estudo está sendo alcançado.
Subjugar as ilusões é a tarefa de toda uma vida. Se somos capazes de nos empenharmos na prática de uma maneira persistente, então depois de meses e anos veremos a transformação da mente. Porém, se esperarmos realização instantânea e domínio instantâneo dos pensamentos e das emoções, então ficaremos desencorajados e deprimidos. O iogue Milarepa do século XI, um dos maiores mestres da história tibetana, passou anos vivendo como um animal selvagem e suportando grandes provações com o obj etivo de se tomar capaz de alcançar compreensões elevadas. Se fôssemos capazes de devotar tanto tempo e energia, então seríamos capazes de perceber mais rapidamente o beneficio resultante da nossa prática.
Desde que tenhamos alguma crença na eficácia dos ensinamentos, é importante desenvolvermos a convicção no valor de empreendermos imediatamente a prática. Para progredir ao longo do caminho, é importante obter o entendimento adequado sobre o caminho e isso só pode ser alcançado ouvindo um ensinamento. Portanto, desenvolva uma motivação para atingir o estado completamente iluminado de amor a todos os outros seres sensíveis e, com esta motivação, ouça ou leia este ensinamento.
Quando alguém ensina o Dharma, está servindo como mensageiro dos Budas. Independentemente da verdadeira compreensão do mestre, é importante que o ouvinte o considere como inseparável do Buda. Os ouvintes não devem perder tempo refletindo a respeito das falhas do mestre. Nos Contos Jataka, é dito que a pessoa deve-se sentar em um assento muito baixo, com uma mente submissa e com grande prazer olhar para o rosto do mestre e beber o néctar das suas palavras, exatamente como os pacientes ouviriam atentamente as palavras do médico. O Buda disse que a pessoa não deve confiar na pessoa do mestre e sim no ensinamento, na essência do ensinamento dele, na mensagem do Buda. É muito importante respeitar o mestre do ponto de vista da santidade do ensinamento em si.
Quando ouvimos ou lemos os ensinamentos, somos como um vaso usado para coletar sabedoria. Se o vaso estiver de cabeça para baixo, embora os deuses façam chover néctar, ele simplesmente escorreria pelos lados do vaso. Se o recipiente estiver sujo, o néctar poderia se estragar. Se o vaso tiver um buraco, o néctar vazaria. Embora possamos acompanhar um ensinamento, se formos facilmente perturbáveis, somos como um recipiente virado de cabeça para baixo. Embora possamos estar atentos, se a nossa atitude for dominada por intenções negativas como ouvir o ensinamento para provar uma inteligência superior, somos como um recipiente sujo. Finalmente, embora possamos estar livres destas falhas, se não os levamos a sério, é como deixar que os ensinamentos entrem por um ouvido e saiam pelo outro. Depois que o ensinamento termina, estaremos totalmente vazios, como se não pudéssemos levar o ensinamento quando saímos pela porta. E por isso que é uma boa idéia tomar notas ou, atualmente, usar um gravador. A capacidade de reter os ensinamentos depende da força da familiaridade.
Em uma conversa com Khun-nu Lama, ele narrou com clareza eventos da sua vida que tinham acontecido muito antes do meu nascimento. Já completei sessenta anos. Tenho a tendência de me esquecer até mesmo dos textos que estou estudando no momento. Khun-nu Lama disse que o fato de não estudar constantemente é devido à falta de um esforço satisfatório, e eu penso que isso é muito verdadeiro. Devido à minha falta de tempo, não leio muitas vezes um livro. Eu apenas o leio inteiramente uma vez e obtenho uma espécie de idéia geral sobre o seu conteúdo. Porque tenho uma inteligência relativamente boa, leio textos muito rapidamente, mas não os leio muitas vezes. Como diz o ditado, uma pessoa com grande inteligência é como um campo em chamas: o fogo se extingue rapidamente.
Se você ler "As etapas do caminho para a iluminação" de Tsong-kha-pa nove vezes, terá nove entendimentos diferentes sobre o texto. Quando você lê uma vez um artigo de jornal, em geral não há razão para lê-lo novamente; você não o aprecia, apenas se sente entediado. Quando lê, pela segunda, terceira e quarta vez, textos profunda e eloqüentemente escritos, às vezes fica surpreso por ter perdido este ou aquele ponto, embora já o tenha lido muitas vezes antes. Às vezes, você obtém uma nova compreensão e uma perspectiva diferente. Por isso, a familiaridade constante é o principal método para não esquecer. Aqueles que desejam alcançar a onisciência devem ser objetivos, atentos e mentalmente humildes, motivados por um desejo de ajudar outros seres sensíveis, prestar total atenção com suas mentes, olhar para o mestre espiritual com os seus olhos e ouvi-lo com os seus ouvidos.
Também é importante ouvir os ensinamentos com uma atitude adequada. Primeiro, você deve se reconhecer como um paciente e o mestre como o médico. O grande poeta indiano Shantideva diz que, quando somos afligidos por enfermidades comuns, precisamos seguir a palavra do médico. Já que somos afligidos por centenas de enfermidades causadas pelas ilusões como o desejo e o rancor, não há nenhuma dúvida de que devemos seguir a palavra de um mestre. As ilusões são muito traiçoeiras. Quando uma ilusão como a raiva está presente, nós perdemos o controle. Preocupações devidas ao apego nos tiram o sono e nos impedem de aproveitarmos uma refeição. Assim como o paciente trataria os medicamentos dados pelo médico como muito preciosos, tomando cuidado para não desperdiçá-los, do mesmo modo os ensinamentos dados por um mestre espiritual devem ser preservados como preciosos.
Para que o paciente se cure da doença, ele precisa tomar o remédio. Deixar simplesmente o remédio em um frasco não irá ajudar. Do mesmo modo, para livrarmos as nossas mentes da doença crônica das ilusões, precisamos colocar os ensinamentos em prática e é somente através da prática que seremos capazes de nos livrarmos da doença da ilusão. Mesmo a curto prazo, quanto maior for a força da sua paciência, menor será a sua raiva e maior a força do seu respeito pelas outras pessoas. Na medida em que diminuem o seu orgulho e a sua vaidade, lentamente decresce a influência das ilusões. Tsong-kha-pa diz que alguém que sofre da doença crônica da lepra não pode ficar curado tomando remédio uma ou duas vezes; ele precisa ser tomado continuamente. Do mesmo modo, as nossas mentes têm estado sob o domínio constante das ilusões desde o início dos tempos. Como podemos esperar livrarmo-nos delas empreendendo a prática uma ou duas vezes simplesmente? Como podemos esperar curar uma enfermidade simplesmente lendo uma bula?
No Budismo tibetano, há quatro escolas: Nyingma, Sakya, Geluk e Kagyu. É um grande equívoco afirmar que uma dessas escolas é superior às outras. Todas elas seguem o mesmo mestre, o Buda Shakyamuni; todas elas combinaram os sistemas do sutra e do tantra. Tento cultivar uma fé e uma admiração por todas as quatro escolas. Não faço isso apenas como um gesto diplomático, mais sim com uma forte convicção. Também convém à minha posição como Dalai Lama saber o suficiente a respeito dos ensinamentos de todas as quatro escolas para ser capaz de oferecer conselho àqueles que me procuram. De outro modo, sou como uma mãe sem braços para salvar uma criança que se afoga. Havia um meditante Nyingma que, certa vez, veio me perguntar sobre uma determinada prática que eu não conhecia bem. Fui capaz de enviá-lo a um grande mestre que podia responder a sua pergunta, mas me senti deprimido porque ele tinha vindo sinceramente buscar um ensinamento comigo e eu não consegui realizar o seu desejo. Se o desejo de uma outra pessoa está além da capacidade de uma pessoa realizá-lo é uma coisa, mas desde que esteja dentro da capacidade da própria pessoa, é muito importante atender às necessidades espirituais de quantos seres sensíveis forem possíveis. Devemos estudar todos os aspectos dos ensinamentos e desenvolver admiração por eles.
Também não devemos considerar o Budismo tibetano superior às outras formas do Budismo. Na Tailândia, em Burma e no Sri Lanka, os monges tem um verdadeiro compromisso com a prática da disciplina monástica e, ao contrário dos monges tibetanos, eles ainda mantém o costume de mendigar comida, o qual era praticado há 2.500 anos por Buda e seus discípulos. Na Tailândia, juntei-me a um grupo de monges em suas rondas. Era um dia quente e ensolarado e, porque a tradição é sair sem sapatos, os meus pés realmente queimavam. Fora isso, foi inspirador ver a prática dos monges tailandeses.
Nos dias de hoje, muitas pessoas só vêem negatividade na prática de uma tradição espiritual ou religião. Elas só vêem como as instituições religiosas exploram as massas e retiram delas os seus bens. Entretanto, as falhas que elas percebem não são falhas das tradições em si, mas das pessoas que alegam serem seguidoras de tais tradições, como os membros dos monastérios ou igrejas que utilizam desculpas espirituais para melhorarem as suas vidas à custa dos outros adeptos. Se os próprios praticantes espirituais são descuidados, isto se reflete em todas as pessoas envolvidas naquela prática. Tentativas de corrigir os erros institucionalizados muitas vezes são interpretadas erroneamente como um ataque à tradição como um todo. Muitas pessoas concluem que a religião é prejudicial e não pode ajudá-las. Rejeitam qualquer forma de fé. Outras pessoas são totalmente indiferentes à prática espiritual e estão satisfeitas com o seu modo de vida mundano. Elas têm confortos físico e material e não são nem contra nem a favor da religião. Contudo, todas são iguais no que se refere ao desejo instintivo de obter felicidade e evitar o sofrimento.
Se abandonamos a prática espiritual ou, no caso do Budismo, não acreditamos mais na lei do karma, deixaremos de perceber os nossos infortúnios como consequências das ações negativas passadas. Eles talvez apareçam como manifestações de falhas da sociedade ou da comunidade ou como resultado da ação de um amigo. Então, ocupamo-nos em culpar outras pessoas por coisas que podem até parecer claramente serem erros nossos. Isso irá reforçar atitudes egoístas, como o apego e o rancor. Através da associação com tais atitudes ilusórias, tornamo-nos apegados aos nossos pertences e adornos por desconfiança ou mesmo por paranóia. Os comunistas chineses abandonaram a religião por amor ao que eles viam como sendo a libertação. Eles chamam um~ao outro de camarada e, no passado, fizeram grandes sacrifícios na luta pela libertação do seu país. Porém, após ganhar o poder, criaram rivalidades políticas e, agora, muitas vezes lutam um contra o outro. Uma pessoa tenta tirar vantagem da outra e, finalmente, uma destrói a outra. Embora o socialismo tenha o objetivo nobre de trabalhar pelo bem-estar comum das massas, os meios para atingir aquele fim antagonizaram a comunidade e a atitude do povo tornou-se de confrontação. Dessa forma, o comunismo tornou-se tão destrutivo que toda a energia do governo é direcionada para a repressão em vez da libertação.
Em contraste aos comunistas, muitos grandes praticantes viajaram pelo caminho budista e conduziram as suas vidas com base no amor e na compaixão. Com tais motivações, a sua intenção básica seria trabalhar em beneficio dos seres sensíveis, por amor aos quais você está tentando cultivar estados de espírito positivos. Mesmo se o dano causado pelos comunistas chineses no Tibet e na China tivesse sido equiparado por um programa positivo igualmente extenso, duvido que teriam sido capazes de contribuir muito para o aprimoramento da sociedade, porque lhes falta a motivação da grande compaixão. Quando examinamos a vida do próprio Karl Marx e a verdadeira origem do marxismo, descobrimos que Karl Marx suportou grandes sofrimentos durante a sua vida e intercedeu em constante batalha para derrubar a classe burguesa. A sua perspectiva era baseada na confrontação. Devido a esta motivação principal, todo o movimento do comunismo fracassou. Se a motivação principal tivesse se baseado na compaixão e no altruísmo, então as coisas teriam sido muito diferentes.
Muitas pessoas que são indiferentes a qualquer forma de prática espiritual estão materialmente bem em alguns países desenvolvidos, mas, mesmo assim, estão completamente insatisfeitas. Embora sejam ricas, não estão contentes. Sofrem a angústia de quererem mais. Por isso, embora sejam materialmente ricas, são mentalmente pobres. Quando descobrem que não podem conseguir tudo o que desejam é que os problemas realmente começam. Tornam-se deprimidas e a ansiedade se insinua. Tenho conversado com alguns dos meus amigos que são muito ricos, mas, por causa da sua visão material da vida, estão absorvidos em seus negócios e não têm tempo para a prática, a qual pode ajudá-los a obterem alguma perspectiva. No processo, eles realmente perdem o sonho da felicidade que o dinheiro deveria proporcionar.
Na prática budista, em vez de evitar estes sofrimentos, nós os visualizamos deliberadamente — os sofrimentos do nascimento, os sofrimentos do envelhecimento, os sofrimentos das flutuações de posições sociais, os sofrimentos da incerteza nesta vida e os sofrimentos da morte. Tentamos pensar neles deliberadamente. Por isso, quando realmente precisamos enfrentá-los, estamos preparados. Quando encontramos com a morte, compreendemos que chegou a nossa hora. Isso não significa que não protegemos os nossos corpos. Quando estamos doentes, tomamos remédios e tentamos evitar a morte. Porém, se a morte é inevitável, então o budista estará preparado. No momento, vamos deixar de lado a questão da vida após a morte, da libertação ou do estado onisciente. Mesmo nesta vida, pensar no Dharma e acreditar no Dharma tem benefícios práticos. No Tibet, embora os chineses tenham realizado uma destruição e uma tortura sistemáticas, as pessoas ainda não perderam a esperança e a determinação. Acho que isto se deve à tradição budista.
Embora a destruição do Budismo não tenha ido tão longe com os chineses quanto o foi com Lang-dar-ma no século IX, a extensão da destruição é muito maior. Quando Lang-dar-ma destruiu o Dharma, havia Atisha que veio ao Tibet e restaurou toda a prática do Budismo. Agora, quer sejamos capazes ou não, a responsabilidade de restaurar o que tem sido destruído sistematicamente pelos chineses caiu sobre todos nós. O Budismo é um tesouro que tem importância para o mundo inteiro. Ensinar e ouvir este ensinamento é uma contribuição para a riqueza da humanidade. Podem existir muitos pontos que você não seja capaz de praticar imediatamente, mas mantenha-os em seu coração. Assim, você será capaz de praticá-los no próximo ano ou após cinco ou dez anos, desde que os ensinamentos não sejam esquecidos.
Embora nós, os tibetanos exilados, tenhamos sido atingidos pela tragédia de perdermos o nosso país, geralmente permanecemos livres de obstáculos para praticarmos o Dharma. Em qualquer país que residamos, temos acesso aos ensinamentos de Buda através de mestres exilados e sabemos como criar condições proveitosas para a meditação. Os tibetanos têm feito isso pelo menos desde o século VIII. Aqueles que permaneceram no Tibet após a invasão chinesa de 1959 tiveram de suportar grandes sofrimentos físicos e mentais. Monastérios foram esvaziados, grandes mestres foram aprisionados e a prática do Budismo tornou-se punível com o aprisionamento e até mesmo com a morte.
Nós devemos usar todas as oportunidades para praticarmos a verdade, para nos aperfeiçoarmos, em vez de esperarmos por um momento no qual achamos que estaremos menos ocupados. Como dizia Gung-thang Rinpoche, as atividades deste mundo são como ondulações em um lago: quando uma desaparece, uma outra emerge; não há fim para elas. As atividades mundanas não cessam até a hora da morte. Devemos tentar encontrar um tempo dentro de nossas vidas diárias para praticarmos o Dharma. Nesta conjuntura — quando obtivemos a preciosa forma humana, conhecemos o Dharma e temos alguma fé nele — se não formos capazes de colocarmos o Dharma em prática, será difícil empreendermos a sua prática em vidas futuras, quando não teremos tais condições. Agora que encontramos um sistema tão profundo, no qual todo o método para alcançarmos o estado de iluminação é acessível, seria muito triste se não tentássemos fazer com que o Dharma tenha algum impacto em nossas vidas.

CAPÍTULO 2
O MESTRE

No passado, infinitos Budas apareceram e nós não tivemos a sorte de encontrá-los. O Buda Shakyamuni veio para cuidar dos seres sensíveis desta época degenerada. Ele apareceu neste mundo há 2.500 anos e logo mostrou a muitos seres sensíveis o caminho para a libertação do ciclo do sofrimento. Entretanto, nós não tivemos a sorte de conhecê-lo e aproveitar sua orientação e, assim, fomos deixados com mentes indômitas e comuns. Houve muitos grandes mestres na Índia e no Tibet que alcançaram o estado de total iluminação. Muitos outros grandes mestres alcançaram elevadas compreensões, enquanto outros apenas conseguiram entrar no caminho.
Os ensinamentos tem sido apresentados há muitos séculos, mas o importante sobre a presença do Dharma não é a sua continuidade através dos tempos, e sim se está ou não presente em nossas próprias mentes, se está vivo em nossas ações. Se ficamos satisfeitos simplesmente porque o ensinamento do Buda ainda existe no mundo, então há o perigo da sua deterioração, porque ninguém será capaz de falar partindo da experiência da prática. Após o falecimento do Décimo Terceiro Dalai Lama, em 1933, os tibetanos se isolaram. Apesar da grande transformação que está acontecendo em outras partes do mundo, os tibetanos se confinam e ficam abertos às invasões dos chineses. O Budismo tibetano está vulnerável à degeneração desde a dispersão dos tibetanos. Por isso, neste momento, é realmente muito importante o empenho na prática do Dharma. Em tais momentos críticos, é o mestre espiritual que nos protege e nos apóia. E o guru que nos apresenta os vastos e profundos ensinamentos expostos pelo próprio Buda em uma maneira adequada ao nosso entendimento.
Embora todos os Budas estejam ativamente empenhados em trabalhar pelo beneficio dos outros seres sensíveis, se seremos ou não capazes de aproveitar tais benefícios depende de como nos relacionamos com o nosso mestre espiritual. O mestre espiritual é a única porta para a iluminação, porque ele é o mestre vivo com o qual podemos nos relacionar diretamente. Conhecer um mestre espiritual não é suficiente, se não seguirmos os conselhos dados a respeito da prática e de como conduzirmos as nossas vidas. Se temos a boa sorte de encontrarmos estes ensinamentos, isso significa que estamos livres dos principais obstáculos à prática do Dharma. Portanto, é importante tornarmos significativa a parte remanescente de nossas vidas através do empenho na prática espiritual. Se tomamos a iniciativa agora, a probabilidade é de que seremos capazes de progredir ao longo do caminho.
A prática de qualquer caminho deve se basear em instruções abrangentes e autênticas. Devemos considerar cuidadosamente que tipo de prática gostaríamos de empreender e em que tipo de ensinamentos queremos basear a nossa prática. O grande erudito tibetano SakyaPandita (1182-1251) costumava dizer que as pessoas tomam muito cuidado com questões mundanas como comprar um cavalo. Então, quando você está escolhendo praticar o Dharma, é importante ser ainda mais seletivo com relação à prática e ao mestre, porque o objetivo é a Fraternidade Búdica e não o veículo. Se o mestre é ou não autêntico independe da capacidade de citar textos budistas. Você deve analisar as suas palavras e as suas ações. Através da íntima análise constante, você será capaz de desenvolver uma profunda admiração por aquela pessoa.
O mestre tibetano Po-to-wa (1031-1106) dizia que o ponto inicial de todo o caminho é aprender a se aconselhar com um mestre espiritual e que a mais insignificante experiência de compreensão e a mais insignificante diminuição da ilusão chegam como conseqüência dos ensinamentos de um mestre espiritual. Se nós não conseguimos administrar os nossos assuntos sem a orientação de um bom advogado, não há dúvidas sobre a importância de um mestre espiritual se vamos seguir o caminho desconhecido para a Fraternidade Búdica.
Existem casos de pessoas com grande inteligência, que parecem ser brilhantes, mas que, no momento em que direcionam a sua atenção para o Dharma, as suas mentes se tornam entorpecidas. Isso indica que elas não acumularam potencial positivo suficiente. Também há casos de pessoas que são muito inteligentes e que têm grande conhecimento do Dharma, mas este conhecimento não afeta as suas mentes.
Elas não põem em prática o que sabem. Neste contexto, o mestre espiritual é muito importante. A compreensão elevada só pode ser obtida especialmente através da orientação de um mestre espiritual que tenha uma experiência autêntica. O mestre se torna um modelo e uma fonte de inspiração para a nossa prática. É possível desenvolver uma forte convicção lendo textos relacionados à prática da compaixão, mas quando encontramos uma pessoa viva que tem praticado e que pode nos ensinar a prática da compaixão por sua própria experiência, isto nos inspira mais poderosamente.
Tsong-kha-pa diz que, a menos que a mente do mestre esteja domada, não há esperança de que consiga domar a das outras pessoas. Os mestres devem ser contidos em sua conduta; as suas mentes precisam estar protegidas contra as distrações pelo poder da concentração. Devem estar equipadas com a faculdade da sabedoria, penetrando a aparência dos fenômenos. Se a pessoa possui um treinamento superior na disciplina ética, diz-se que a sua mente está domada. No Pratimoksha Sutra, o sutra que trata dos votos monásticos, a mente é comparada a um cavalo selvagem e a prática da ética é comparada às rédeas com as quais este cavalo selvagem é domado. Portanto, quando a mente indômita se afasta do caminho e se entrega às ações negativas, esse cavalo selvagem precisa ser domado usando a rédea da ética, restringindo o corpo e a mente das ações negativas.
Um mestre qualificado também precisa estar habilitado no treinamento superior da concentração evidenciado pela aplicação constante da atenção e da introspecção. Aqueles que viveram recentemente no Tibet ganharam grande experiência na aplicação da atenção e da introspecção, porque até
mesmo a mais insignificante expressão física de discordância enraivece o regime chinês. Eles precisam estar constantemente atentos e alertas ao fato de estarem transgredindo alguma regra. Um mestre também precisa estar completamente pacificado pelo treinamento superior na sabedoria de compreender a ilusória natureza dos fenômenos.
Tsong-kha-pa diz que uma pessoa ter a sua mente domada apenas não é suficiente; a pessoa também precisa ter conhecimento dos ensinamentos. O lama Drom-ton-pa (1005-1064) costumava dizer que, quando um grande mestre fala sobre um tópico específico, deve ser capaz de relacioná-lo com todo o cânone do caminho para a Fraternidade Búdica. Os mestres devem ser capazes de transformar a sua compreensão de um tópico inteiro em uma instrução que seja benéfica e fácil de aplicar. Como dizem as escrituras, os Budas não podem lavar as ações negativas das outras pessoas, não podem remover os sofrimentos delas e nem podem transferir as suas compreensões para nós. Somente mostrando o caminho certo para nós seguirmos é que os Budas podem libertar os seres sensíveis.
O próprio objetivo de ensinar outras pessoas é ajudá-las a compreender. Conseqüentemente, é importante ter um estilo de falar atraente, fazer o que for necessário para tornar o assunto bem claro. A motivação para ensinar deve ser pura
nunca ser proveniente de um desejo de fama ou de ganho material. Se o dinheiro for a motivação, então o ensinamento torna-se simplesmente uma atividade mundana. Antes da vinda dos chineses em 1951, algumas pessoas em Lhasa liam textos ou cantavam canções para juntar dinheiro. Isso ainda acontece no Tibet. Os turistas se reúnem em torno e tiram fotografias. Acho isso muito triste, porque o Dharma está sendo usado como um instrumento para a mendicância e não para o progresso espiritual.
Po-to-wa dizia que, embora tivesse dado muitos ensinamentos, nunca tinha aceitado mentalmente nem sequer o mais insignificante elogio, porque estava ensinando movido por sua compaixão pelos outros seres sensíveis. Ele considerava que ensinar era uma responsabilidade sua, porque o seu objetivo principal era ajudar outras pessoas. Não há nenhuma razão para fazer os outros se sentirem em dívida ou para aceitar os seus agradecimentos, porque o que você realmente está fazendo é cumprindo o seu próprio voto. Quando você come a sua própria comida, não há nenhuma razão para agradecer a si mesmo, porque comer é algo que você precisa fazer.
Tsong-kha-pa diz que os mestres espirituais que servem como guias no caminho para a iluminação são como a fundação ou a raiz da sua realização de iluminação. Conseqüentemente, aqueles que buscam um mestre espiritual devem estar familiarizados com as qualificações necessárias e determinar se o mestre tem aquelas qualificações. No mundo, sem um líder apropriado, não podemos melhorar a nossa sociedade. Do mesmo modo, a menos que o mestre espiritual seja apropriadamente qualificado, apesar da sua forte fé, segui-lo poderia ser prejudicial, se você for conduzido na direção errada. Por isso, antes de realmente tomar alguém como um mestre espiritual, é importante examiná-lo, perguntar a outras pessoas sobre aquela pessoa e analisá-la você mesmo. Quando você achar que uma pessoa é adequada para ser um mestre espiritual, só então deve começar a considerá-la como tal. Da mesma maneira, antes do mestre espiritual aceitar alguém como um discípulo, é muito importante que, primeiro, preencha completamente as qualificações de um mestre espiritual.

Só porque um lama tem alguns assistentes ou criados não o qualifica como um mestre espiritual. Existe uma diferença entre ser um mestre espiritual e ser um tulku, a reencarnação de um mestre em particular que tem retornado por gerações. Existem alguns que são as duas coisas; alguns são tulkus mas não são lamas e alguns são lamas mas não são tulkus. Na comunidade tibetana, os tulkus ocupam uma posição elevada. Se eles não têm também as qualidades de um mestre espiritual, então é simplesmente uma posição social. Na sociedade tibetana, e mesmo no Ocidente onde muitos lamas foram para ensinar, quando alguém é chamado de tulku, as pessoas imediatamente olham para ele. Porém, outros que realmente são praticantes sérios, não atraem tanto respeito simplesmente porque não têm o rótulo de tulku. O maior filósofo budista da Índia, Nagarjuna, é considerado um mestre por todos os praticantes posteriores, embora ele tivesse um nome simples e nós não tenhamos nenhum registro de que ele tenha tido um séqüito ou um secretário particular. Os nossos lamas tibetanos têm nomes longos e pomposos, alguns dos quais são difíceis de pronunciar. Na verdade, não há nenhuma necessidade de ter outro título além do de bhikshu (monge), que foi dado pelo próprio Buda. Estes são alguns dos grandes equívocos da sociedade tibetana. Nós, tibetanos, não prestamos atenção aos mantos monásticos amarelos dados realmente pelo próprio Buda, mas, ao contrário, prestamos mais atenção aos trajes que são dados como uma marca de classe social para fazer a pessoa parecer ilustre. Os mestres indianos mais recentes usavam uma espécie de chapéu avermelhado e, no Tibet, os seus seguidores davam mais atenção ao chapéu vermelho do que ao que era verdadeiramente importante.
A importância de encontrar um mestre digno de confiança deve ser enfatizada muitas vezes. Penso que a própria situação do Tibet demonstra a insensatez do fato de não ser cético em relação a um líder. Sob o pretexto de serem patrocinadores e benfeitores, os chineses estabeleceram uma intima relação com o Tibet. Nós não percebemos que a China fazia isso para retratar o Tibet como uma província do seu próprio país e que, finalmente, usaria esse argumento para justificar a invasão. Se não administrarmos os nossos assuntos, tanto espirituais quanto sociais, de uma maneira responsável, inevitavelmente iremos nos arrepender mais tarde.
O grande monge Geshe Sang-pu-wa (século XII) tinha muitos mestres espirituais. Certa vez, quando estava viajando de volta do Tibet oriental, ele encontrou um discípulo leigo dando ensinamentos. Geshe Sang-pu-wa foi escutar. Quando os seus assistentes perguntaram por que ele precisava obter ensinamentos de um leigo, Geshe Sang-pu-wa respondeu que havia escutado dois pontos de vista que foram muito úteis. Devido ao fato de Geshe Sang-pu-wa ser capaz de desenvolver admiração e confiança em muitas pessoas, para ele não era um problema ter muitos mestres. Pessoas como nós, cujas mentes ainda não estão domadas, têm tendência de verem falhas no seu mestre espiritual e estão propensas a perderem a fé facilmente. Já que vemos falhas no mestre espiritual e já que estamos propensos a perdermos a fé como resultado de vermos falhas superficiais ou projetadas, é melhor termos menos mestres espirituais mas nos relacionarmos bem com eles. Se você não tem esse problema, está livre para ter tantos mestres quantos forem possíveis.
Quando você vê o mestre espiritual como a personificação de todos os Budas e se refugia nele, esta fé é baseada na admiração.
Quando você cultiva a confiança percebendo o guru como o alicerce e a raiz do seu desenvolvimento, esta fé é baseada na convicção. Quando você desenvolve fé no mestre espiritual seguindo as palavras dele, isto é chamado de fé desejante. De um modo geral, a fé é considerada a raiz ou o alicerce de todos os pensamentos virtuosos. Quando você é capaz de ver o seu mestre espiritual como igual ao próprio Buda, você será capaz de parar de ver as falhas do seu mestre e perceberá apenas as suas grandes qualidades. Porém, a fé deve estar baseada na experiência testada e aprovada, conseqüentemente, você deve, constante e deliberadamente, tentar evitar o tipo de percepção que o conduz a ver falhas no mestre espiritual, as quais, na verdade, podem ser suas próprias projeções, e tentar ver as grandes qualidades do mestre espiritual. Diz-se que, embora o seu mestre espiritual, na realidade, possa não ser um verdadeiro Buda, se você o vê como tal, então irá obter inspiração como se ele fosse um verdadeiro Buda. Por outro lado, mesmo que na realidade o seu mestre espiritual possa ser um perfeito Buda, se você não for capaz de vê-lo dessa maneira, irá receber a inspiração de um ser humano comum.
Nos dias de hoje, nesta era da degeneração os gurus agem em nome de todos os Budas e bodhisattvas com o objetivo de libertar todos os seres sensíveis do ciclo do sofrimento. Em muitos tantras está profetizado que, na era da degeneração, o Buda irá aparecer no mundo sob a forma de gurus e que a compaixão deles deve agir de uma maneira mais vigorosa, que pode parecer confusa para aqueles que esperam que a compaixão assuma uma determinada forma. Se não formos receptivos ao ensinamento e à compaixão do Buda, então nenhum mestre pode nos ajudar muito. Porém, a fé e a convicção irão nos abrir para o poder dos Budas, cuja forte compaixão é direcionada a todos os seres sensíveis sem exceção. Isso inclui você e eu.
Um ensinamento diz: “Enquanto eu estava vagando no ciclo da existência, você (o Buda) procurou por mim e iluminou a minha ignorância. Você me mostrou a luz e me livrou da servidão.” Através de um processo de eliminação, podemos encontrar o Buda que está trabalhando por nós. Pergunte a si mesmo quem, entre aquelas pessoas que lhe são íntimas, o está conduzindo para fora do ciclo do sofrimento causado pela ignorância, pelo apego e pelo rancor. É um dos seus pais? Dos seus amigos? O seu marido ou a sua esposa? Os seus amigos não são, os seus pais e os seus parentes também não. Então, se há um Buda trabalhando por você, deve ser a pessoa em sua vida que o conduz para a iluminação — o seu mestre. É por isso que a pessoa pode ver o mestre como um perfeito Buda. No passado, houve casos nos quais, devido a uma obstrução mental, os praticantes viam o verdadeiro Buda sob uma forma comum. Asanga (século IV) teve tido uma visão do Buda do futuro, Maitreya, como um cachorro sarnento, e Sang-pu-wa viu uma mulher Buda como uma velha leprosa. Se tivéssemos conhecido os grandes mestres do passado que alcançaram a iluminação em uma única vida, eles pareceriam ser apenas mendigos indianos comuns que vagavam nus com linhas pintadas em suas testas.
Quando falo da importância da devoção ao mestre e de percebê-lo como o Buda, por favor não interprete mal, considerando que eu estou dizendo que sou um Buda. Não é este o caso; eu sei que não sou um Buda. Quer seja exaltado ou condenado, ainda serei o monge budista comum que eu sou. Sou um monge e acho isto muito confortável. As pessoas me chamam de Bodhisattva da Compaixão, Avalokíteshvara, mas isto
não me torna Avalokiteshvara. Os chineses me chamam de um lobo usando um manto amarelo, mas isso não me torna menos do que um ser humano ou mais do que um lobo. Permaneço apenas um monge comum.
O que você deve fazer se o fato de seguir as instruções do seu mestre faz com que você aja imoralmente ou se os ensinamentos dele contradizem os ensinamentos budistas? Você deve se manter fiel ao que é virtuoso e deixar o que não está de acordo com o Dharma. Na Índia, houve um mestre com muitos discípulos que dizia a eles para saírem e roubarem. O mestre era um membro da casta brâmane e era muito pobre. Ele falou aos discípulos que, quando os brâmanes ficam pobres, têm o direito de roubar. Dizia que, como favoritos do deus Brahma, o criador do mundo, para um brâmane o ato de roubar não seria pouco virtuoso. Os discípulos já estavam para sair em sua expedição para roubar, quando o brâmane percebeu que um estudante permanecia em silêncio com sua cabeça inclinada. O brâmane lhe perguntou por que não se mexia. O estudante disse: “O que você nos aconselhou a fazermos agora vai contra o Dharma, portanto, não acho que possa fazê-lo.” Isto agradou ao brâmane que falou: “Eu testei o conhecimento de vocês. Embora todos vocês tenham sido meus pupilos e sejam leais a mim, a diferença entre vocês está no seu julgamento. Este rapaz é muito leal a mim, mas, quando eu aconselhei uma coisa errada, ele foi capaz de reconhecer que isso ia contra o Dharma e que não poderia fazê-lo. Isso está certo. Sou o mestre de vocês, mas vocês devem examinar o meu conselho e, sempre que for contra o Dharma, não devem segui-lo.”


CAPÍTULO 3
A OPORTUNIDADE

Imagine um vasto oceano com um leme à deriva sobre ele. Nas profundezas do oceano, nada uma solitária tartaruga cega que vem à tona para respirar uma vez a cada cem anos. Quão extraordinário seria para a tartaruga vir à tona com a sua cabeça atravessada no buraco do leme? O Buda dizia que conseguir um precioso renascimento humano é tão raro quanto aquilo.
Diz-se que até mesmo os deuses invejam a nossa existência humana, porque é a melhor forma de existência para a prática do Dharma. Neste mundo há algo como cinco bilhões de pessoas e todas elas são seres humanos. As suas mãos, cérebros, membros e corpos são quase iguais. Porém, se examinarmos se todos os humanos têm a oportunidade para praticar, então descobriremos uma grande diferença. Nós estamos livres das circunstâncias adversas que impedem a prática do Dharma, circunstâncias adversas tais como renascer com visões erradas, renascer como um animal, um espírito, um ser demoníaco ou como um deus viciado no prazer, ou como um humano que tem dificuldade em ouvir os ensinamentos, ou nascer em um lugar onde não há nenhum ensinamento budista disponível. Outras circunstâncias adversas seriam nascer em uma terra bárbara onde os pensamentos de sobrevivência consomem todos os recursos da pessoa ou em uma época na qual nenhum Buda apareceu.
Pelo lado positivo, nós somos dotados de muitas coisas que tornam a nossa prática possível. Por exemplo, nascemos como humanos capazes de reagir aos ensinamentos, em uma terra onde eles estão disponíveis. Não cometemos nenhum crime hediondo e temos um grau de fé nos ensinamentos budistas. Embora não tenhamos renascido no mundo quando o Buda estava vivo, temos encontrado mestres espirituais que podem seguir a linhagem dos ensinamentos que receberam desde os tempos de Buda. O Dharma permanece estável e florescente, porque existem praticantes que seguem estes ensinamentos. Também vivemos em uma época na qual existem benfeitores generosos que proporcionam aos monges e às monjas o que é necessário para a prática, tal como alimento, roupa e abrigo.
Os ensinamentos do Buda beneficiam um número infinito de seres que, como um resultado da prática, alcançam compreensões elevadas e eliminam as ilusões das suas mentes. Porém, se tivéssemos renascido como um animal ou como um ser demoníaco ou como um espírito voraz (descritos no Capítulo 5), a presença da doutrina do Buda neste mundo absolutamente não nos ajudaria. Por exemplo, o Buda Shakyamuni nasceu na India, tornou-se completamente iluminado e girou a roda do Dharma três vezes. Se nós tivéssemos obtido uma preciosa vida humana naquela época e tivéssemos sido cuidados pelo Buda, então o nosso destino atual seria totalmente diferente. Poderíamos ter escapado do renascimento nesta época. Porém, este não foi o caso e o ensinamento dele não nos beneficiou até agora. É uma sorte não estarmos nas formas inferiores. da existência, mas simplesmente renascer em uma forma humana e estar livre da escravidão da existência não-humana não é suficiente. Suponha que tivéssemos renascido em um lugar onde o Dharma floresce, mas, se nascêssemos sem as nossas faculdades mentais completas, o Dharma não nos beneficiaria. As incapacidades físicas não impedem necessariamente a prática do Dharma, mas sem o uso da mente, isso seria impossível. Mesmo que não tivéssemos nenhuma incapacidade, se tivéssemos nascido em uma comunidade na qual as pessoas negam a lei de causa e efeito, os nossos intelectos teriam sido preenchidos com visões erradas. Porém, este não é o caso. Se tivéssemos nascido nas épocas nas quais não havia nenhuma doutrina budista, então não estaríamos em um caminho de transformação da mente para o fim do sofrimento. Mas este também não é o caso. Devemos reconhecer a sorte de termos renascido em uma época na qual os ensinamentos do Buda existem. Precisamos refletir sobre isso, alegrando-nos com a nossa sorte de sermos livres dessas desvantagens. Ao pensarmos no que foi dito nestas linhas, finalmente seremos capazes de compreender que obtivemos uma forma de existência humana que é incomparável. Se considerarmos isto de uma maneira detalhada, finalmente reconheceremos a verdadeira importância da existência humana. Decidiremos nos comprometermos fortemente com uma prática séria do Dharma.
Diz-se que a doutrina do Buda Shakyamuni permanecerá por cinco mil anos. Se renascermos como um humano depois disso, não nos beneficiaremos com isso. Porém, nós renascemos neste mundo durante uma era de iluminação na qual a doutrina do Buda ainda permanece. Para querer transformar a mente, você deve estar persuadido a tirar total proveito da sua vida como um humano.
Até este momento, temos vivido as nossas vidas, temos nos alimentado, temos encontrado abrigo, temos usado roupas. Se continuarmos desta maneira, simplesmente comendo por amor à vida, que significado isso daria às nossas vidas? Todos nós obtivemos uma preciosa forma humana, mas simplesmente obter uma forma humana não é nada de que possamos nos orgulhar. Existe um número infinito de outras formas de vida no planeta, mas nenhuma delas está envolvida no tipo de destruição ao qual os humanos se entregam. Os seres humanos põem em perigo toda a vida no planeta. Se deixarmos a compaixão e uma atitude altruísta guiarem as nossas vidas, seremos capazes de alcançar grandes coisas — algo que as outras formas de vida não são capazes de fazer. Se formos capazes de usar esta preciosa forma humana de uma maneira positiva, isso terá valor a longo prazo. Então, a nossa existência humana se tornará verdadeiramente preciosa. Entretanto, se usarmos o nosso potencial humano, a capacidade do cérebro, de maneiras negativas, para torturar pessoas, explorar os outros e causar destruição, então a nossa existência humana será um perigo para nós mesmos no futuro, bem como para as outras pessoas imediatamente. A existência humana, se usada destrutivamente, tem o potencial de aniquilar tudo o que conhecemos. Ou ela pode ser a fonte para nos tornarmos um Buda.
Até agora, não avançamos muito no nosso processo espiritual. Pergunte a si mesmo: “Que ações saudáveis eu tenho feito até agora, que práticas tenho exercido para domar a mente e me tornar confiante no futuro?” Se você não encontrar nada que poderia lhe dar uma sensação de certeza em relação ao seu destino futuro, então todo o ato de comer para manter a sua vida até agora é bonito, mas um desperdício. Como diz o poeta indiano Shantideva do século VIII, a única razão do nosso nascimento teria sido simplesmente causar dor e dificuldade à nossa mãe; não teria servido para nenhum outro objetivo.
Shantideva diz que, tendo conseguido esta preciosa forma humana, eu seria estúpido se não meditasse e acumulasse virtudes. Se, por preguiça, eu continuar adiando a prática, no momento da morte carregarei o peso do grande remorso e da preocupação com os sofrimentos que terei de suportar nas formas inferiores de existência. Se, tendo obtido uma existência humana tão valiosa, nós a desperdiçarmos, então seria como ir à terra das jóias e voltar com as mãos vazias. Reflita sobre o fato de que todos os grandes mestres do passado que alcançaram a iluminação em uma única vida — Nagarjuna, Asanga e grandes mestres tibetanos como Milarepa — tiveram exatamente a mesma vida humana que nós obtivemos agora. A única diferença entre nós e eles é que não temos a iniciativa deles. Meditando sobre a raridade das nossas circunstâncias, podemos cultivar uma motivação semelhante.
Embora um cachorro possa viver em um lugar onde o Dharma floresce, ele não pode beneficiar-se ativamente disso. Os animais são ainda mais fortemente guiados por ilusões e não têm a nossa capacidade de escolher entre diferentes tipos de comportamento. Eles se entregam mais fàcilmente a ações e a pensamentos negativos, como a raiva e o desejo, e têm mais dificuldade com as ações virtuosas. Se eu renascer


como um animal ou qualquer outra forma inferior de existência, como terei a oportunidade de praticar o Dharma? É muito difícil acumular virtudes, eu estaria continuamente acumulando ações não-virtuosas e assim, até mesmo após a morte, eu estaria girando em uma reação em cadeia de constantemente renascer nas formas inferiores de existência. Se for o caso de que até uma ação negativa momentânea tem o potencial de causar renascimento nas formas inferiores de existência por inúmeras eras, então, como conseqüência de infinitas ações não-virtuosas que acumulei no passado, como posso duvidar que renascerei em formas inferiores de existência? Uma vez que você renasce nos domínios inferiores de existência, mesmo que o karma que causou este renascimento possa ser exaurido pelos sofrimentos que você suporta, quase não há esperança de se libertar desses domínios inferiores porque, em um ciclo vicioso, você estará se entregando a ações negativas que causarão outro renascimento ainda mais inferior. Tendo refletido sobre a dificuldade de obter tal existência humana e refletindo sobre a estupidez de desperdiça-la, você deveria tomar a decisão de fazer o melhor uso de sua vida empreendendo a prática do Dharma.
Normalmente, os Budistas dizem que a nossa existência humana comum requer, como sua causa principal, a pura observação da ética em uma vida anterior. Além disso, especialmente para alcançar uma forma humana com a capacidade de praticar o Dharma, é muito importante que o ato ético em si seja completado com outras ações, como a generosidade e as e orações evocativas, na vida anterior. Se você levar isso em consideração, vai descobrir que é muito raro que alguém possua todos esses fatores. Pensando na raridade da sua causa, você perceberá como é difícil obter uma preciosa forma humana.
Se você comparar a existência humana com outros tipos de existência, tal como a dos animais, existem muito mais animais e insetos do que humanos. Mesmo dentro da existência humana, uma pessoa cuja vida seja dotada de tempo suficiente e de oportunidade para praticar o Dharma é realmente muito rara. Se você entende a importância desta preciosa vida humana, então todas as outras compreensões virão naturalmente. Se alguém, que tem ouro em sua mão, atira-o fora e depois reza para conseguir mais ouro amanhã, essa pessoa tornar-se-ia alvo de risadas. Do mesmo modo, embora possamos estar idosos e fisicamente fracos, somos muito superiores em nossa capacidade de praticarmos o Dharma do que outros seres sensíveis. Podemos, pelo menos, recitar o mantra do Bodhisattva da Compaixão, OM MANI PADME HUM. Mesmo se uma pessoa está no momento de morrer, ela ainda tem a capacidade de pensar e de cultivar pensamentos virtuosos.
As atividades do Buda — desde que ele começou a cultivar o desejo de ajudar outras pessoas até a acumulação de mérito e a obtenção final da iluminação — foram todas realizadas por amor a outros seres sensíveis. O bem-estar de outros seres sensíveis se classifica em dois tipos: o bem-estar temporário, que é a obtenção de um renascimento favorável, e o bem-estar definitivo, que é a obtenção da libertação e do estado onisciente. Todos os ensinamentos associados à obtenção de um renascimento favorável no futuro são considerados como pertencentes à categoria de pequeno alcance. Quando falamos da nossa meta definitiva, distinguimos dois tipos: libertação do sofrimento e onisciência. Todos os ensinamentos relacionados à prática para alcançar a libertação pessoal são ensinamentos de médio alcance. Para este objetivo, praticantes da categoria de médio alcance envolvem-se na prática da ética, da concentração e da sabedoria e, depois, eliminam as ilusões e alcançam a libertação do sofrimento e do renascimento. Todos os ensinamentos que delineiam as técnicas para a obtenção da onisciência da Fraternidade Búdica, incluindo tanto o veículo sutra quanto o tântrico, estão relacionados aos praticantes de grande alcance. Um ser da categoria de grande alcance é alguém cuja mente é motivada por grande compaixão por todos os outros seres sensíveis e que deseja alcançar a iluminação para o bem deles. Assim, um grupo só consegue pensar em uma vida futura; estas são pessoas de pequeno alcance. As pessoas do segundo grupo não estão preocupadas apenas com os assuntos da vida futura, são capazes de pensar em algo mais distante, na libertação do renascimento; estes são seres da categoria de médio alcance. Outras pessoas não se ocupam apenas com o seu próprio bem-estar; são mais corajosas. Interessam-se também pelo bem-estar de outros seres sensíveis; estes são seres da categoria de grande alcance.
Tsong-kha-pa diz que, embora dividamos a prática em três tipos: a prática de alcance inicial, a de médio alcance e a de grande alcance, as duas primeiras estão incluídas nas práticas de grande alcance, porque são como uma preparação para a prática de grande alcance. Quando treinamos as nossas mentes para compreender a importância da nossa preciosa vida humana e a sua raridade, decidimos tirar proveito disso. Os nossos corpos, compostos de carne, sangue e ossos, são como a bananeira, que não tem cerne, e são a fonte de todo tipo de sofrimento físico. Conseqüentemente, não deveríamos nos preocupar tanto com os nossos corpos. Ao contrário, seguindo o exemplo dos grandes bodhisattvas, deveríamos tornar o nosso nascimento humano significativo e usarmos os nossos corpos para o beneficio de outros seres sensíveis.
Em outras palavras, oportunidades preciosas e raras nos cercam e deveríamos reconhecer o seu valor. Obtivemos esta preciosa forma humana dotada com estas características especiais. Se for para desperdiçá-la entregando-se simplesmente aos assuntos e às ações triviais, seria triste. Tendo compreendido o valor da preciosa forma humana, é importante tomar a decisão de capitalizar e utilizar isso para a prática do Dharma. Caso contrário, dificilmente haveria qualquer diferença entre as nossas vidas como seres humanos e aquelas dos animais.

CAPÍTULO 4
MORTE

O Buda dizia que, de todas as estações para arar o outono é a melhor; de todos os tipos de combustível para o fogo, o estrume de vaca é o melhor e, de todos os diferentes tipos de consciência, a consciência da impermanência e da morte é a melhor. A morte é certa, mas quando ela irá acontecer é incerto. Se realmente enfrentamos as coisas com destemor, não sabemos o que virá primeiro — o amanhã ou a morte. Não podemos ter certeza absoluta de que o velho irá morrer primeiro e de que o jovem permanecerá. A atitude mais realista que podemos cultivar é esperar pelo melhor, mas estarmos preparados para o pior. Se o pior não acontecer, então está tudo bem. Porém, se ocorrer, não nos pegará desprevenidos. Isso também se aplica à prática do Dharma: esteja preparado para o pior, porque nenhum de nós sabe quando vai morrer.
Todos os dias, ouvimos falar de morte nos jornais ou
sobre a morte de um amigo, de alguém que conhecíamos vagamente ou de um parente. Às vezes, sentimos a perda;
às vezes, quase nos regozijamos, mas, de algum modo, ainda
nos aferramos à idéia de que isso não irá acontecer conosco. Achamos que somos imunes à impermanência e, por isso, adiamos a prática espiritual (que pode nos preparar para a morte), pensando que teremos tempo no futuro. Quando, inevitavelmente, o momento chega, a única coisa que nos resta é o arrependimento. Precisamos nos envolver imediatamente na prática para que, não importa quão cedo a morte venha, estejamos preparados.
Quando a hora da morte chega, nenhuma circunstância
pode evitá-la. Não importa que tipo de corpo você possa ter, não importa quão resistente à doença você possa ser, a morte certamente irá chegar. Se refletirmos sobre as vidas dos Budas e dos bodhisattvas do passado, veremos que, hoje, eles são apenas uma lembrança. Grandes mestres indianos, como Nagarjuna e Asanga, fizeram grandes contribuições para o Dharma e trabalharam para o beneficio dos seres sensíveis, mas tudo o que resta deles agora são os seus nomes. O mesmo se aplica a grandes dirigentes e líderes políticos. As histórias de suas vidas são tão vigorosas que quase parece que eles estão vivos. Quando vamos em peregrinação à Índia, encontramos lugares, como o grande monastério de Nalanda, onde grandes mestres como Nagarjuna e Asanga estudaram e ensinaram. Agora, Nalanda está em ruínas. Quando vemos os vestígios deixados pelas grandes figuras da história, as ruínas nos mostram a natureza da impermanência. Como diz a antiga máxima budista, se entrarmos no subsolo, no mar ou no espaço, nunca seremos capazes de mantermos a morte à distância. Os membros da nossa própria família irão, mais
cedo ou mais tarde, se separar uns dos outros, como um conjunto de folhas sopradas pelo vento. Dentro de um ou dois meses, alguns de nós começarão a morrer e outros irão morrer dentro de poucos anos. Em oitenta ou noventa anos, todos nós, incluindo o Dalai Lama, teremos morrido. Então, somente as nossas realizações espirituais irão nos ajudar.
Não existe ninguém que, depois de nascer, vá cada vez mais para longe da morte. Ao contrário, chegamos cada vez mais perto dela, como animais sendo levados para o abate. Assim como os vaqueiros reúnem os seus bois e as suas vacas e os reconduzem para o estábulo, nós, atormentados pelo sofrimento do nascimento, da doença, do envelhecimento e da morte, movemo-nos sempre para mais próximo do fim de nossas vidas. Neste universo, tudo está sujeito à impermanência e irá, finalmente, se desintegrar. Como dizia o Sétimo Dalai Lama, pessoas jovens que parecem muito fortes e saudáveis mas que morrem cedo são, na verdade, mestres que nos ensinam sobre a impermanência. De todas as pessoas que conhecemos ou temos visto, nenhuma restará em cem anos. A morte não pode ser evitada por mantras ou buscando refúgio em um poderoso líder político.
Durante os anos da minha vida, conheci muitas pessoas. Agora, elas são apenas objetos da minha lembrança. Hoje em dia, conheço novas pessoas. É como assistir a uma peça de teatro; após interpretarem os seus papéis, as pessoas trocam de roupa e reaparecem. Se passamos as nossas curtas vidas sob a influencia do desejo e do rancor; se, por amor àquelas vidas curtas, aumentamos as nossas ilusões, o mal que faremos será de prazo muito longo, porque irá destruir as nossas perspectivas de alcançarmos a felicidade definitiva.
Se, algumas vezes, não somos bem-sucedidos em assuntos mundanos triviais, isso não tem muita importância. Porém, se desperdiçarmos esta preciosa oportunidade proporcionada pela vida humana, estaremos, a longo prazo, nos decepcionando. O futuro está em nossas mãos — quer desejemos suportar o sofrimento extremo caindo nos domínios da existência não-humana, quer desejemos conseguir formas superiores de renascimento, quer desejemos alcançar o estado de iluminação. Shantideva diz que, nesta vida, temos a oportunidade, temos a responsabilidade e temos a capacidade de decidirmos e determinarmos como serão as nossas vidas futuras. Devemos treinar as nossas mentes para que as nossas vidas não sejam desperdiçadas — nem mesmo por um mês ou por um dia — e estejam preparadas para o momento da morte.
Se pudermos cultivar aquele entendimento, a nossa motivação para a prática espiritual virá do nosso interior — o fator motivacional mais forte que existe. Geshe Sha-ra-wa (1070-1141) dizia que o seu melhor mestre era a meditação sobre a impermanência. O Buda Shakyamuni dizia, no seu primeiro ensinamento, que a base do sofrimento era a impermanência.
Quando defrontados com a morte, os melhores praticantes ficarão encantados; os praticantes de nível médio estarão bem preparados e mesmo os praticantes inferiores não terão nenhum arrependimento. Quando chegamos ao último dia de nossas vidas, é muito importante não termos nem sequer uma pontada de arrependimento; caso contrário, a negatividade que experimentamos na hora da morte poderia influenciar o nosso próximo renascimento. A melhor maneira de tornar a vida significativa é empreender o caminho da compaixão.
Se você refletir sobre a morte e a impermanência, começará a tornar a sua vida significativa. Você pode achar que, porque mais cedo ou mais tarde irá morrer, não há nenhuma razão para tentar pensar agora na morte, porque isso somente o tornaria deprimido e preocupado. Porém, a consciência da morte e da impermanência pode ter grandes benefícios. Se as nossas mentes estão aferradas ao sentimento de que não somos sujeitos à morte, então nunca seremos sérios em nossa prática e nunca faremos progresso no caminho espiritual. A crença de que você não irá morrer é o maior obstáculo para o progresso espiritual: você não se lembrará do Dharma; não seguirá o Dharma mesmo que se lembre dele e não seguirá o Dharma completamente mesmo que possa segui-lo até um certo ponto. Se você não contemplar a morte, então nunca levará a sério a sua prática. Dominado pela preguiça, não colocará esforço e ímpeto na sua prática e será bloqueado pela exaustão. Você terá grande apego à fama, à riqueza material e à prosperidade. Quando pensamos tanto nesta vida, tendemos a trabalhar para aqueles que amamos, os nossos parentes e amigos — e esforçamo-nos por fazê-los felizes. Então, quando outras pessoas tentam fazer mal a eles, nós imediatamente rotulamos essas outras pessoas como nossas inimigas. Dessa maneira, as ilusões como o desejo e o rancor aumentam como um rio que transborda no verão. Automaticamente, estas ilusões nos induzem a nos entregarmos a todo tipo de ações negativas, cujas consequências serão, no futuro, renascer em formas inferiores de existência.
Como resultado de uma pequena acumulação de mérito, nós já obtivemos uma preciosa vida humana. Qualquer mérito restante se manifestará como um grau relativo de prosperidade nesta vida. Sendo assim, o pequeno capital que temos já terá sido gasto e, se não acumularmos nada de novo seria como gastarmos as nossas poupanças sem fazermos um novo depósito. Se simplesmente exaurirmos a nossa acumulação de mérito, então, mais cedo ou mais tarde, seremos arremetidos para uma vida futura de sofrimento ainda mais intenso.
Diz-se que, se não tivermos uma consciência adequada da morte, morremos dominados pelo medo e pelo arrependimento. Estes sentimentos podem nos enviar para domínios inferiores. Muitas pessoas evitam falar sobre a morte. Evitam pensar no pior; por isso, quando ele realmente acontece, são tomadas pela surpresa e estão totalmente despreparadas. A prática budista nos aconselha a não ignorarmos os infortúnios, mas a reconhecê-los e confrontá-los, preparando-nos para eles desde o início. Desse modo, quando realmente experimentarmos o sofrimento, ele não será completamente insuportável. Evitar simplesmente um problema não ajuda a resolvê-lo e, na verdade, pode torná-lo pior.
Algumas pessoas observam que a prática budista parece enfatizar o sofrimento e o pessimismo. Acho que isso está muito errado. Na realidade, a prática budista se esforça para obter uma paz duradoura — algo que é inconcebível para uma mente comum — e para pôr fim aos sofrimentos de uma vez por todas. Os budistas não se satisfazem apenas com a prosperidade nesta vida ou com a perspectiva da prosperidade em vidas futuras, mas, ao contrário, buscam uma felicidade definitiva. Agora, a perspectiva budista básica é que, já que os sofrimentos são uma realidade, simplesmente evitá-los com a mente não resolverá o problema. O que deve ser feito é confrontar o sofrimento, enfrentá-lo e analisá-lo, determinar as suas causas e descobrir a melhor maneira de suportá-lo. Quando aquelas pessoas que evitam pensar na miséria são realmente atingidas por ela, estão despreparadas e sofrem mais do que aquelas que se familiarizaram com os sofrimentos, conhecem a origem deles e sabem como eles surgem. Um praticante do Dharma pensa diariamente na morte, reflete sobre os sofrimentos dos seres humanos, sobre o sofrimento da hora do nascimento, sobre o sofrimento do envelhecimento, sobre o sofrimento da doença e sobre o sofrimento da morte. Todos os dias, os praticantes tântricos passam pelo processo da morte na imaginação. É como se morressem mentalmente uma vez a cada dia. Devido à sua familiaridade com a morte, eles estarão bem preparados quando realmente se encontrarem com ela. Se você precisa atravessar um terreno muito perigoso e assustador, deve descobrir com antecedência quais são os perigos e como lidar com eles. Não pensar neles com antecedência seria uma tolice. Quer você goste ou não disso, precisa ir lá. Portanto, é melhor estar preparado e, assim, você saberá como reagir quando as dificuldades aparecerem.
Se você tiver uma perfeita consciência da morte, terá certeza de que vai morrer em breve. Então, se descobrir que vai morrer hoje ou amanhã, você, devido à sua prática espiritual, tentará se separar dos objetos de apego pondo fim aos seus pertences e vendo toda a prosperidade mundana como desprovida de qualquer essência ou importância. Você tentará pôr todo o seu esforço na sua prática. A vantagem de estar consciente da morte é que isso torna a vida significativa e, sentindo alegria quando o momento da morte se aproximar, você irá morrer sem nenhum remorso.
Quando você reflete sobre a certeza da morte em geral e sobre a incerteza da sua hora, fará todo esforço para se preparar para o futuro. Perceberá que a prosperidade e as atividades desta vida são desprovidas de essência e de importância.
Então, trabalhar para o beneficio a longo prazo seu e de outras pessoas parecerá muito mais importante e a sua vida será orientada por esta compreensão. Como dizia Milarepa, já que, mais cedo ou mais tarde, precisamos deixar tudo para trás, por que não abrirmos mão imediatamente? Apesar de todos os nossos esforços, incluindo tomar medicamentos ou realizar cerimônias duradouras, é muito pouco provável que alguém irá viver mais do que cem anos. Existem alguns casos excepcionais, mas, após sessenta ou setenta anos, a maioria das pessoas que estão lendo este livro não estará viva. Após cem anos, as pessoas refletirão sobre o nosso tempo simplesmente como uma parte da história.
Quando a morte chega, a única coisa que pode ajudar é a compaixão e a compreensão da natureza da realidade que a pessoa obteve. Desse ponto de vista, é muito importante examinar se existe ou não vida após a morte. Vidas passadas e futuras existem pelas seguintes razões: determinados padrões de pensamento do ano passado, do ano retrasado e mesmo da infância podem ser recordados agora. Isso mostra claramente que existiu uma consciência anterior à consciência presente. O primeiro instante de consciência nesta vida também não é produzido sem uma causa nem nasceu de algo permanente ou inanimado. Um momento de recordação é algo claro e conhecido. Conseqüentemente, deve ser precedido por alguma coisa clara e conhecida, um momento de recordação anterior. Não é provável que o primeiro momento de recordação nesta vida pudesse vir de qualquer outra coisa que não fosse uma vida anterior.
Embora o corpo físico possa agir como uma causa secundária de mudanças sutis na mente, ele não pode ser a causa principal. A matéria nunca pode se transformar em mente e a mente não pode se transformar em matéria. Conseqüentemente, a mente deve vir da mente. A mente desta vida presente vem da mente da vida anterior e serve como a causa da mente da próxima vida. Quando você refletir sobre a morte e tiver consciência dela constantemente, a sua vida tornar-se-á significativa.
Compreendendo as grandes desvantagens do nosso instintivo apego à permanência, devemos nos opor a isso e estarmos constantemente conscientes da morte. Assim, ficaremos motivados para empreendermos a prática do Dharma com mais seriedade. Tsong-kha-pa diz que a importância da consciência da morte não se limita apenas à etapa inicial. É importante através de todas as etapas do caminho. É importante no início, no meio e também no fim.
A consciência da morte que devemos cultivar não é o medo comum e incapacitante de sermos separados das pessoas e posses que amamos. Ao contrário, devemos aprender a temer o fato de que iremos morrer sem termos posto um fim às causas que determinam um renascimento em formas inferiores de existência e de que iremos morrer sem termos acumulado as causas e condições necessárias para um renascimento futuro favorável. Se não realizarmos estes dois objetivos, então, no momento da morte, seremos dominados por um forte medo e remorso. Se passamos toda a nossa vida entregando-nos a ações negativas induzidas pelo rancor e pelo desejo, causamos prejuízos não apenas temporariamente mas também a longo prazo, porque acumulamos e armazenamos uma vasta coleção de causas e condições para a nossa própria queda em vidas futuras. Temer isto irá nos inspirar a transformarmos até mesmo as nossas vidas do dia-a-dia em algo significativo. Tendo obtido uma consciência da morte, iremos ver a prosperidade e os assuntos desta vida como sem importância e iremos trabalhar por um futuro melhor. Este é o propósito de meditar sobre a morte. Se temermos a nossa morte agora, tentaremos encontrar um método para superar o nosso medo e o nosso arrependimento na hora da morte. Entretanto, se tentarmos evitar um medo da morte imediata, no momento da morte estaremos dominados pelo remorso.
Tsong-kha-pa diz que, quando a nossa contemplação da impermanência se torna muito firme e estável, tudo o que encontrarmos irá nos ensinar sobre a impermanência. Ele diz que o processo da abordagem da morte começa desde a concepção e que, enquanto estamos vivos, as nossas vidas são constantemente atormentadas pela doença e pelo envelhecimento. Embora estejamos saudáveis e vivos, não deveríamos nos enganar pensando que não iremos morrer. Não deveríamos ficar obviamente encantados quando estamos bem. É melhor estarmos preparados para o nosso destino futuro. Por exemplo, alguém que está caindo de um penhasco muito alto não fica feliz antes de chegar ao solo.
Mesmo enquanto estamos vivos, existe muito pouco tempo para a prática do Dharma. Mesmo se assumimos que podemos viver muito, talvez cem anos, nunca deveríamos nos apegar ao sentimento de que teremos tempo para praticar o Dharma mais tarde. Não deveríamos ser influenciados pela procrastinação, que é uma forma de preguiça. Metade da vida de uma pessoa é passada dormindo e, na maioria do tempo restante, somos distraídos pelas atividades mundanas. Quando ficamos velhos, a nossa força física e mental diminui e, mesmo que queiramos praticar, será tarde demais, porque não teremos a capacidade de praticar o Dharma. Como diz uma escritura, metade da vida de uma pessoa é passada dormindo; durante dez anos somos crianças e durante vinte anos somos velhos, e o tempo intermediário é atormentado por preocupações, tristezas, sofrimentos e depressões. Portanto, dificilmente existe algum tempo para a prática do Dharma. Se vivemos sessenta anos e pensarmos em todo o tempo passado como crianças, em todo o tempo que estamos dormindo e no tempo em que somos idosos demais, descobriremos que só há cerca de cinco anos que podemos devotar à prática séria do Dharma. Se não fizermos um esforço deliberado para empreendermos a prática do Dharma, mas, ao contrário, vivermos como normalmente o fazemos, certamente passaremos as nossas vidas em ociosidade sem objetivo. Gungthang Rinpoche dizia, parcialmente brincando: “Passei vinte anos sem pensar em praticar o Dharma; depois, passei outros vinte anos pensando que praticaria mais tarde e, depois, passei dez anos pensando em como eu tinha perdido a oportunidade de praticar o Dharma.”
Quando eu era apenas uma criança, não aconteceu muita coisa. Com cerca de quartorze ou quinze anos, comecei a me interessar seriamente pelo Dharma. Depois, os chineses vieram e passei muitos anos em todos os tipos de confusões políticas. Fui para a China e, em 1956, visitei a Índia. Depois, retornei ao Tibet e novamente me envolvi algumas vezes em assuntos políticos. A melhor coisa da qual me lembro foi o meu exame para geshe (o mais alto grau acadêmico e
nas universidades monásticas tibetanas), após o qual precisei deixar o meu país. Agora, estou no exílio por mais de trinta anos e, embora tenha conseguido estudar e praticar um pouco, a maior parte da minha vida é passada ociosamente sem muito beneficio. Ainda não cheguei ao ponto de me arrepender por não ter praticado. Se eu pensar em termos da prática da Tantra Ioga Mais Elevada, há certos aspectos do caminho que não posso praticar porque os meus componentes físicos começaram a se deteriorar com a idade. O tempo para praticar o Dharma não chega naturalmente, deve ser estabelecido deliberadamente.
Se você precisa sair para uma longa viagem, em um determinado momento é necessário fazer preparativos. Como sempre gosto de dizer, deveríamos gastar cinqüenta por cento do nosso tempo e da nossa energia com questões relativas à nossa vida futura e cinqüenta por cento com assuntos desta vida.
Existem muitas causas para a morte e muito poucas causas para permanecer vivo. Além disso, aquelas coisas que normalmente consideramos como sendo de apoio à vida, tais como comida e remédios, podem se tornar causas da morte. Hoje, diz-se que muitas doenças são causadas pela nossa dieta. As químicas usadas para o crescimento das safras e para a engorda dos animais contribuem para a má saúde e causam desequilíbrio no corpo. O corpo humano é tão sensível e tão delicado que, se estiver gordo demais, você tem todo o tipo de problema: você não consegue andar direito, tem pressão alta e o seu próprio corpo torna-se um fardo. Por outro lado, se estiver magro demais, você tem pouca força ou estamina, o que leva a todo tipo de outros problemas. Quando você é jovem, aborrece-se por não estar incluído entre os adultos e, quando é idoso demais, sente-se como se tivesse sido expulso da sociedade. Esta é a natureza da nossa existência. Se o dano fosse algo imposto externamente, então você poderia, de algum modo, evitá-lo; poderia ir para baixo da terra ou submergir no oceano. Porém, quando o dano vem do interior, não há muita coisa que você possa fazer. Enquanto estamos livres de doenças e dificuldades e temos um corpo saudável, devemos capitalizar e tirar a essência disso. Tirar a essência da vida é tentar alcançar um estado totalmente livre da doença, da mortalidade, da decadência e do medo — isto é, um estado de libertação e onisciência.
O homem mais rico do mundo não pode levar uma única posse consigo na morte. Tsong-kha-pa diz que, se devemos deixar para trás este corpo, do qual gostamos tanto, consideramos como sendo nosso e que tem nos acompanhado desde o nosso nascimento como o nosso mais antigo companheiro, então não há dúvidas sobre deixar para trás os pertences materiais. A maioria das pessoas gasta muito tempo e energia simplesmente tentando obter alguma prosperidade e felicidade nesta vida. Porém, no momento da morte, todas as nossas atividades mundanas, tais como cuidar dos nossos parentes e amigos e competir com os nossos rivais, precisam ser deixadas incompletas. Embora você possa ter comida suficiente para se abastecer durante cem anos, na hora da morte você terá de ir com fome, embora possa ter roupas que seriam suficientes para cem anos, você terá de ir nu. Quando a morte chega, não há nenhuma diferença entre a maneira como um rei morre, deixando o seu reino para trás, e a maneira como morre um mendigo, deixando o seu cajado para trás.
Você deveria tentar imaginar uma situação na qual estivesse doente. Imagine que você tem uma doença grave e que toda a sua força física foi embora; você se sente exausto e até mesmo os medicamentos não o irão ajudar. Quando chegar a hora da morte, o médico falará de duas maneiras: para o paciente, ele dirá: “Não se preocupe, você vai melhorar. Não há nada com que se preocupar; apenas relaxe.” Para a família, irá dizer: “A situação é muito grave. Vocês devem se preparar para as cerimônias finais.” Naquele instante, você não terá nenhuma oportunidade de concluir negócios incompletos ou de terminar os seus estudos. Quando você se deitar, o seu corpo estará tão fraco que dificilmente poderá move-lo. Depois, o calor do seu corpo se dissolve gradativamente e você sente que o seu corpo se tornou muito rijo, como uma árvore que caiu na sua cama. Você irá realmente começar a ver o seu próprio cadáver. As suas últimas palavras mal serão ouvidas e as pessoas ao seu redor precisarão lutar para entender o que você está dizendo. A sua última refeição não será uma comida deliciosa, mas sim uma mistura de pílulas que você não terá força para engolir. Você precisará deixar os seus amigos mais íntimos; talvez se passem eras antes que possa encontrá-los novamente. A sua respiração se modificará e ficará barulhenta. Gradualmente, ela se tornará mais irregular, com a inalação e a exalação cada vez mais rápidas. Finalmente, haverá uma última exalação muito forte e será o fim da sua respiração. Isso determina a morte como ela é comumente entendida. Depois disso, o seu nome, que um dia deu tanta alegria aos seus amigos e à sua família ao ouvi-lo, terá um prefixo acrescentado a ele, “o falecido”.
E crucial que, no momento da morte, a mente esteja em um estado virtuoso. E a última oportunidade que temos e que não deve ser perdida. Embora possamos ter vivido uma vida muito negativa, no momento da morte devemos fazer grande esforço para cultivar um estado virtuoso da mente. Se, na hora da morte, formos capazes de desenvolver uma compaixão muito forte e poderosa, há esperança de que, na próxima vida, renasceremos em uma existência favorável. De um modo geral, a familiaridade representa um grande papel nisso. Quando a pessoa está doente e quase morrendo, não é oportuno que outras pessoas permitam que o moribundo sinta desejo ou rancor. No mínimo, devem ser mostradas ao moribundo imagens de Budas e bodhisattvas para que ele possa vê-las, tentar desenvolver uma forte crença neles e morrer em uma constituição mental auspiciosa. Se isso não for possível, é muito importante que os assistentes e os parentes não façam o moribundo sentir-se perturbado. Naquele momento, uma emoção muito forte, como o desejo ou o rancor, pode remeter a pessoa a um estado de grande sofrimento e, bem possivelmente, a um renascimento inferior.
Na medida em que a morte se aproxima, podem aparecer determinados sinais indicando o futuro. Aqueles que tem mentes virtuosas sentirão que estão indo da escuridão para a luz ou para um campo aberto. Sentir-se-ão felizes, terão visões de coisas bonitas e não irão sentir nenhum sofrimento agudo enquanto morrem.
Se, no momento da morte, as pessoas têm sentimentos muito fortes de desejo ou rancor, elas verão todo tipo de alucinações e sentirão grande ansiedade. Algumas pessoas sentem como se estivessem entrando na escuridão; outras sentem que estão queimando. Conheci algumas pessoas que estiveram muito doentes que me falaram que, quando estavam seriamente enfermas, tinham visões de estarem sendo queimadas. Isso é uma indicação do destino futuro delas. Como um resultado de tais sinais, a pessoa moribunda irá se sentir muito confusa e irá gritar e gemer sentindo como se todo o corpo estivesse sendo derrubado. Na hora da morte, terá uma dor aguda. Tudo isso deriva, em última análise, da afeição ‘focalizada em si mesmo. O moribundo sabe que a pessoa que ele tratou com tanto carinho vai morrer.
Quando aquelas pessoas que, na maior parte de suas vidas, se entregaram à ação negativa morrem, diz-se que o processo de dissolução do calor corporal começa da parte superior do corpo até alcançar o coração. Para os praticantes da virtude, diz-se que o processo de dissolução do calor começa de baixo, das pernas, e, finalmente, alcança o coração. Em qualquer caso, a consciência realmente vai embora partindo do coração.
Após a morte, a pessoa entra no estado intermediário, o bardo. No estado intermediário, o corpo tem diversas características extraordinárias: todos os sentidos físicos estão completos e o corpo tem uma aparência física que é idêntica à aparência física do ser que renascerá a seguir. Por exemplo, se for para renascer como um ser humano, terá uma aparência física idêntica de um ser humano. Se for para renascer como um animal, então terá a aparência física do animal em particular. O ser do estado intermediário tem uma visão tão poderosa que pode ver através de objetos sólidos e é capaz de viajar para qualquer lugar sem obstáculos. Os seres do estado intermediário só são visíveis para os seres intermediários do mesmo tipo. Por exemplo, se um ser intermediário está destinado a renascer como um humano, ele só será visível para seres intermediários que estão destinados a renascerem como humanos. Os seres intermediários do domínio das divindades andam e olham para cima e os seres intermediários do domínio humano andam e olham para a frente. Diz-se que os seres intermediários daquelas pessoas que se entregaram a ações negativas e que estão destinadas a renascerem em domínios inferiores se movem de cabeça para baixo.
O período de tempo passado nesse estado intermediário é de sete dias. Após uma semana, se o ser do estado intermediário encontra circunstâncias apropriadas, irá renascer no domínio de existência apropriado. Se não encontra, então precisará morrer novamente uma pequena morte e surgir novamente como um ser intermediário. Isso pode acontecer sete vezes, mas, após 49 dias, não pode mais permanecer como um ser do esta do intermediário e deve renascer, quer queira ou não. Quando chega a hora dele renascer, ele vê seres do seu próprio tipo brincando e irá desenvolver um desejo de juntar-se a eles. Os fluidos regeneradores dos futuros pais, o sêmen e o óvulo, parecem-lhe diferentes. Embora os pais possam não estar realmente dormindo juntos, o ser intermediário terá a ilusão de que estão e se sentirá atraído por eles. Se alguém provavelmente nascer como uma menina, diz-se que ela sentirá repulsa pela mãe e, dirigida pela atração, tentará dormir com o pai. Se alguém provavelmente nascer como um menino, ele sentirá repulsa pelo pai, mas terá atração pela mãe e tentará dormir com ela. Movido por este desejo, ele ou ela vai até onde os pais estão. Então, nenhuma parte do corpo dos pais aparece para aquele ser, exceto os órgãos sexuais, e, conseqüentemente, o ser se sente frustrado e irritado. Aquela raiva serve como a condição para a sua morte do estado intermediário e ele renasce no útero. Quando os pais estão copulando e chegam ao orgasmo, diz-se que uma ou duas gotas de sêmen espesso e o óvulo se misturam como nata na superfície do leite fervido. Naquele momento, a consciência do ser intermediário extingue-se e entra na mistura. Aquilo marca a entrada no útero. Embora os pais possam não estar copulando, o ser intermediário tem a ilusão de que eles o estão fazendo e irá para o lugar. Isso implica que existem casos nos quais, embora os pais possam não copular, ainda assim a consciência pode entrar nos elementos físicos. Isso explica os atuais bebês de proveta. Quando os fluidos são recolhidos dos pais, misturados e guardados em um tubo, a consciência pode entrar naquela mistura sem que realmente haja a cópula.
Shantideva diz que até os animais agem para experimentar o prazer e evitar a dor nesta vida. Precisamos voltar a nossa atenção para o futuro; caso contrário, não seremos diferentes dos animais. A consciência da morte é o verdadeiro fundamento de todo o caminho. Até que você tenha desenvolvido esta consciência, todas as outras práticas ficam obstruídas. O Dharma é o guia que nos conduz através do terreno desconhecido; o Dharma é o alimento que nos sustenta em nossa viagem; o Dharma é o capitão que nos levará à praia desconhecida do nirvana. Conseqüentemente, ponha toda a energia do seu corpo, da sua fala e da sua mente na prática do Dharma. Falar a respeito da meditação sobre a morte e a impermanência é muito fácil, mas a verdadeira prática é realmente muito difícil. Quando realmente praticamos, às vezes não notamos muita mudança, especialmente se apenas comparamos o ontem e o hoje. Existe um perigo de perder a esperança e ficar desencorajado. Em tais situações, é bastante útil não comparar dias ou semanas, mas, ao contrário, tentar comparar o nosso estado de espírito atual com aquele de cinco ou dez anos atrás; estão, veremos que houve alguma mudança. Podemos observar alguma mudança na nossa perspectiva, na nossa compreensão, na nossa espontaneidade, na nossa reação a estas práticas. Aquilo, em si, é uma fonte de grande encorajamento; realmente nos dá esperança, porque mostra que, se fizermos o esforço, existe o potencial para o progresso futuro. Ficarmos desencorajados e decidirmos adiar a nossa prática para um momento mais favorável é realmente muito perigoso.

CAPÍTULO 5
RENASCIMENTO

O karma pode ser compreendido como causa e efeito do mesmo modo que os físicos entendem que, para cada ação, existe uma reação igual e contrária. Como na física, nem sempre é previsível qual forma aquela reação irá assumir, mas, às vezes, podemos prever a reação e podemos fazer alguma coisa para minimizarmos o resultado. Agora a ciência está trabalhando em maneiras de limpar o meio ambiente que está poluído e muitos cientistas estão tentando prevenir a poluição futura. Do mesmo modo, as nossas vidas futuras são determinadas pelas nossas ações presentes, bem como por aquelas do nosso passado imediato e das nossas vidas passadas. A prática do Dharma pretende minimizar a consequencia das nossas ações kármicas e prevenir qualquer poluição futura por pensamentos e ações negativas. Caso contrário, aqueles pensamentos e ações negativos nos levarão a um renascimento de extremo sofrimento.
Mais cedo ou mais tarde, vamos morrer e, mais cedo ou mais tarde, precisaremos renascer novamente. Os domínios de existência nos quais podemos renascer estão limitados a dois: o favorável e o desfavorável. Onde vamos renascer depende do karma.
O karma é criado por um agente, uma pessoa, um ser vivo. Os seres vivos não são nada mais do que o ego, definido como a continuidade da consciência. A natureza da consciência é a luminosidade e a clareza. Ela é um agente do conhecimento que é precedido por um momento anterior de consciência que é a sua causa. Se conseguirmos compreender que a continuidade da consciência não pode ser exaurida em uma única vida, descobriremos que existe um suporte lógico para a possibilidade da vida após a morte. Se não nos convencemos da continuidade da consciência, pelo menos sabemos que não há nenhuma evidência que possa invalidar a teoria da vida após a morte. Nós não podemos comprová-la, mas também não podemos rejeitá-la. Há muitos casos de pessoas que se recordam nitidamente de suas vidas passadas. Este não é um fenômeno limitado aos budistas. Existem pessoas com tais recordações cujos pais não acreditam em vida após a morte ou em vidas passadas. Conheço três casos de crianças que são capazes de recordarem nitidamente as suas vidas passadas. Em um dos casos, a recordação da vida passada foi tão intensa que, embora anteriormente os pais não acreditassem em vida após a morte, como conseqüência da clareza da recordação da sua filha, agora estão convencidos. A filha não apenas lembrava-se claramente de ter vivido em uma aldeia da vizinhança que ela reconheceu, mas foi capaz de identificar os seus pais anteriores, os quais ela não havia tido nenhuma outra oportunidade de conhecer. Se não existe nenhuma vida após a morte, não existe nenhuma vida passada e nós precisaremos encontrar uma outra explicação para essas recordações. Há também muitos casos de pais que têm dois filhos educados da mesma maneira, na mesma sociedade, com a mesma formação, embora um seja mais bem-sucedido do que o outro. Nós achamos que essas diferenças surgem em conseqüência de diferenças em nossas ações kármicas passadas.
A morte não é nada mais do que a separação da consciência do corpo físico. Se você não aceita este fenômeno chamado consciência, acho que também é muito difícil explicar exatamente o que é a vida. Quando a consciência está ligada ao corpo e a relação deles continua, nós chamamos isto de vida. Quando a consciência termina a sua relação com um corpo em particular, chamamos isto de morte. Embora os nossos corpos sejam uma agregação de componentes químicos e físicos, um tipo de agente sutil de luminosidade pura constitui a vida dos seres vivos. Já que isto não é físico, não podemos mensurá-lo, mas isso não significa que não exista. Temos gastado muito tempo, energia e pesquisa na exploração do mundo externo, mas agora, se mudarmos aquele enfoque e dirigirmos toda essa exploração, pesquisa e energia para o interior e começarmos a analisar, acho realmente que temos a capacidade de compreender a natureza da consciência — esta clareza, esta luminosidade dentro de nós mesmos.
De acordo com a explicação budista, a consciência é considerada não-obstrutiva e não-física. Todas as emoções, ilusões e falhas humanas surgem das ações desta consciência. Entretanto, também é devido à natureza inerente desta consciência que uma pessoa pode eliminar todas estas falhas e ilusões e produzir uma paz e uma felicidade duradouras. Uma vez que a consciência é a base para a existência e para a iluminação, existem extensos escritos sobre o assunto.
Pela nossa experiência, sabemos que a consciência ou mente está sujeita à mudança, pois ela é dependente das causas e condições que a modificam, transformam e influenciam as condições e as circunstâncias das nossas vidas. Para surgir, a consciência precisa ter uma causa substancial semelhante à natureza da consciência em si. Sem um momento anterior de consciência, não pode haver qualquer consciência. Ela não surge do nada e não pode se transformar em nada. A matéria não pode se transformar em consciência. Conseqüentemente, deveríamos ser capazes de voltarmos no tempo para
investigarmos a seqüência causal dos momentos de consciência.
As escrituras budistas falam sobre centenas de bilhões de sistemas mundiais, números infinitos de sistemas mundiais, e da consciência existindo desde o início dos tempos. Acredito que existam outros mundos. A cosmologia moderna também diz que há muitos tipos diferentes de sistemas mundiais. Embora a vida não tenha sido observada cientificamente em outros planetas, seria ilógico concluir que a vida só é possível neste planeta, que é dependente deste sistema solar, e não em outros tipos de planetas. As escrituras budistas mencionam a presença de vida em outros sistemas mundiais, bem como tipos diferentes de sistemas solares e um número infinito de universos.
Agora, se perguntam aos cientistas como o universo surgiu, eles têm uma grande quantidade de respostas a oferecer. Porém, se lhes perguntam por que essa evolução aconteceu, então eles não têm nenhuma resposta. Geralmente, eles não explicam isso como criação de Deus, porque são observadores objetivos que tendem a acreditar apenas no universo material. Alguns dizem que isso aconteceu por acaso. Agora, tal posição em si é ilógica porque, se existe alguma coisa por acaso, então é equivalente a dizer que as coisas realmente não têm quaisquer causas. Porém, pelas nossas vidas cotidianas, percebemos que tudo tem uma causa: as nuvens causam a chuva; o vento sopra as sementes e, assim, novas plantas crescem. Não existe nada sem uma razão. Se a evolução tem uma causa, então há duas explicações possíveis. Você pode aceitar que o universo foi criado por Deus, caso em que haverá muitas contradições, tais como o sofrimento e o mal também terem sido necessariamente criados por Deus. A outra opção é explicar que existem infinitos seres sensíveis cujos potenciais kármicos criaram coletivamente todo este universo como um ambiente para eles. O universo que habitamos é criado pelos nossos próprios desejos e ações. E por essa razão que estamos aqui. Isso, pelo menos, é lógico.
No momento da morte, somos impelidos pela força das nossas próprias ações kármicas. A consequencia das ações kármicas negativas é o renascimento em domínios inferiores. Para nos desencorajarmos de praticarmos ações negativas, deveríamos tentar~imaginar se seríamos capazes de suportar os sofrimentos dos domínios inferiores. Tendo percebido que a felicidade é uma conseqüência das ações positivas, teremos grande prazer em acumular virtudes. Comparando a sua própria experiência com a de outras pessoas, você será capaz de desenvolver uma forte compaixão, porque irá compreender que os sofrimentos delas não são diferentes dos seus e que elas também desejam alcançar a libertação. É importante meditar sobre o sofrimento dos domínios animal e infernal. Se não fizermos progresso espiritual, as nossas ações negativas nos conduzirão para lá. Se sentirmos que não podemos suportar o sofrimento do calor ou do frio ou da sede e da fome insaciáveis, então a nossa motivação para praticarmos irá aumentar incalculavelmente. Nos dias de hoje, esta existência humana nos proporciona a oportunidade e as condições para nos libertarmos.
As formas inferiores de existência são renascer como um animal, um fantasma voraz ou um ser demoníaco. De acordo com as escrituras, os infernos estão localizados a uma certa distância diretamente abaixo do Bodh Gaya, o local na Índia onde o Buda alcançou a iluminação. Porém, se você realmente viajasse naquela distância, terminaria no meio da América. Portanto, estes ensinamentos não devem ser considerados literalmente. Eles foram transmitidos de acordo com a convenção da época, ou a crença popular. O objetivo da vinda do Buda para este mundo não foi medir a circunferéncia do mundo e a distância entre a terra e a lua, mas, ao contrário, ensinar o Dharma, libertar os seres sensíveis, aliviar os seres sensíveis dos seus sofrimentos. Se não compreendemos o enfoque básico do Budismo, podemos imaginar que, às vezes, o Buda fala de uma maneira contraditória e confusa. Porém, existe um propósito em cada uma das diversas visões filosóficas que ele ensinou, e cada uma beneficia tipos diferentes de seres sensíveis. Quando ele falava sobre os infernos, deve ter levado em conta muitas convenções e crenças populares com o objetivo específico de motivar os ouvintes a praticarem o Dharma.
Acredito que tais estados de variados infernos quentes e frios realmente existam. Se os estados mais elevados, como o nirvana e a onisciência, existem, por que não existiria o seu oposto, o estado mais extremo de sofrimento, a mente mais indômita? Mesmo na existência humana existem tipos diferentes de pessoas: algumas aproveitam mais a vida e têm um grau maior de felicidade, algumas precisam superar um grau maior de sofrimento. Agora, todas estas diferenças na experiência surgem como consequencia de diferenças nas causas —ações ou karma. Se formos mais longe e compararmos os seres humanos às várias formas de existência animal, descobriremos que os estados mentais dos animais são mais indômitos e o sofrimento e a confusão deles são mais óbvios. Mesmo assim, eles têm uma tendência natural de desejar a felicidade e de evitar o sofrimento. Alguns animais são muito espertos: se tentamos prendê-los dando-lhes comida, eles ficam muito cautelosos. No momento em que acabam de comer, tentam fugir. Porém, se formos sinceros e pacientes ao lhes dar comida, eles podem vir a confiar totalmente em nós. Até mesmo os animais, como os cachorros e os gatos, apreciam o valor da delicadeza; eles apreciam o valor da sinceridade e do amor.
Se existem níveis diferentes de realização espiritual baseados em quão domada a mente se torna, também deve haver níveis diferentes de mentes indômitas. Além do domínio animal, há estados corno aquele dos fantasmas vorazes, que não conseguem satisfazer os seus apetites. Os domínios infernais são estados de existência nos quais os sofrimentos são tão extremos que os seres que lá estão dificilmente conservam qualquer poder de julgamento ou de inteligência. Nos infernos, os sofrimentos são calor intenso e frio intenso. Provar que esses domínios existem está além da nossa lógica comum. Porém, podemos concluir que eles existem porque sabemos que o Buda demonstrou ser muito exato, lógico e consistente em muitos outros assuntos importantes, como a impermanência e a causalidade, que podemos verificar logicamente.
Conseqüentemente, podemos inferir que ele também estava correto sobre os vários níveis de renascimento. Os únicos motivos do Buda para explicar os domínios infernais são a compaixão e o seu desejo de ensinar o que seria benéfico para os seres sensíveis se libertarem do ciclo do renascimento. Já que ele não tem nenhuma razão para mentir, essas coisas misteriosas também devem ser verdadeiras.
Todos os dias, nós aceitamos, como sendo verdadeiras, coisas que não temos nenhuma maneira direta de comprovar. Eu nasci em 6 de julho de 1935. Sei disso simplesmente porque a minha mãe me falou e eu acredito nela. Não existe nenhum modo pelo qual eu possa perceber diretamente ou comprovar isso logicamente. Porém, acreditando em alguém em quem confio e que não tem nenhuma razão para me mentir, sei que nasci em 6 de julho de 1935. Aquelas questões mais profundas sobre a vida após a morte e sobre a existência de outros domínios só podem ser abordadas confiando nas escrituras. Precisamos comprovar a validade daquelas escrituras usando a razão. Não podemos simplesmente tomar uma citação ao pé da letra. Precisamos estudá-la e aplicá-la em nossas vidas.
Os muitos níveis diferentes de sofrimento nos domínios inferiores de existência têm sido explicados em diferentes escrituras. Alguns dos sofrimentos são tão extremos que estão além do nosso entendimento. Se você renascer em qualquer um desses domínios inferiores de existência, como irá conseguir suportá-lo? Examine se você tem criado as causas e as condições para renascer em tais domínios inferiores de existência. Uma vez que estamos sob o controle de ilusões, das forças poderosas do rancor e do desejo, seremos forçados, contra a nossa vontade, a nos entregarmos a ações negativas que realmente serão a causa da nossa própria queda. Se for este o caso, então precisaremos nos submeter a esses sofrimentos. Se você não deseja passar por tais sofrimentos ou se acha que nunca seria capaz de suportar tais sofrimentos extremos, deve impedir o seu corpo, a sua fala e a sua mente de se entregarem a ações que irão acumular o potencial para a sua queda em tais estados. Aqueles que já acumularam devem ser adequadamente purificados de acordo com as práticas pertinentes. E já que tudo é impermanente, não existe nenhuma falta de virtude que não possa ser purificada.
Quanto mais você refletir sobre esses sofrimentos e quanto mais fortemente sentir que eles seriam insuportáveis, mais irá perceber o potencial destrutivo das ações negativas. Quando você medita sobre esses sofrimentos, deve tentar se imaginar renascendo nestas existências e suportando os sofrimentos. Por exemplo, diz-se que, quando está refletindo sobre os sofrimentos dos infernos quentes, você deve imaginar o seu corpo queimando ou, quando está refletindo sobre os sofrimentos dos infernos frios, deve pensar que o seu corpo está congelando. O mesmo deve ser feito com relação aos sofrimentos dos animais. Recomenda-se que você vá para algum lugar isolado e tente simular toda a experiência de tais seres, tentando se imaginar suportando o sofrimento deles. Quanto mais poderosamente você se sentir incapaz de suportar o sofrimento, maior será o seu medo dos domínios inferiores. Isso leva ao conhecimento do poder destrutivo das ações negativas e do sofrimento por elas causado. Posteriormente, quando você meditar sobre a compaixão, essa prática irá ajudá-lo a aumentar a sua compaixão com relação às outras pessoas que se entregam a ações negativas muito graves. Por exemplo, quando os tibetanos pensam nos chineses, cujas ações negativas consistem de genocídio, ao invés de ficarem com raiva, tentam desenvolver um forte sentimento de compaixão em relação àqueles que são tão controlados por suas ilusões. Embora essas pessoas possam não passar por sofrimentos óbvios imediatamente, é só uma questão de tempo, porque, mais cedo ou mais tarde, terão de enfrentar as conseqüências. Se, como seres humanos, formos capazes de desenvolvermos imediatamente um medo do sofrimento, temos o potencial, a capacidade e a oportunidade de evitarmos as causas da nossa própria queda. Nós podemos purificar o negativo e acumular grandes reservas de mérito. Seremos capazes de aumentarmos a acumulação de mérito que já temos e de devotarmos o mérito de modo a que ele não possa ser destruído pela raiva. Se, dia após dia, empreendermos a prática adequada, seremos capazes de tornar as nossas vidas humanas significativas.

CAPÍTULO 6
REFÚGIO



Um budista é alguém que, motivado pelo medo dos sofrimentos do ciclo do renascimento e dos domínios inferiores de existência, se refugia nas Três Jóias: o Buda, o Dharma (os ensinamentos) e o Sangha (a comunidade espiritual). Através da prática e da experiência, um budista sabe que as Três Jóias têm a capacidade de protegê-lo contra a queda em domínios inferiores de existência. Certa vez, o mestre do século XI, Po-to-wa, observou que, quando visitava um monastério, mesmo entre os monges mais antigos que estavam lá dentro em oração, havia alguns que nem sequer eram budistas. Muitos deles não tinham uma compreensão adequada das Três Jóias. O que fortifica o desejo de alcançar o nirvana é assumir o refúgio.
O Buda é um ser que está totalmente livre de todas as ilusões e falhas, que é dotado de todas as boas qualidades e que obteve a sabedoria eliminando a escuridão da ignorância. O Dharma é o resultado da sua iluminação. Após ter alcançado a iluminação, um Buda ensina, e o que ele ensina é chamado de Dharma. O Sangha é constituído por aquelas pessoas que se engajam na prática dos ensinamentos dados pelo Buda. Estas são as definições básicas das Três Jóias. A atividade do Buda é dar os ensinamentos e mostrar o caminho. A atividade ou a função do Dharma é eliminar os sofrimentos e as suas causas, as ilusões. A função do Sangha é tornar prazeroso o empreendimento da prática deste Dharma. Você deve olhar o Buda com respeito. A sua atitude em relação ao Dharma deve ser de desejo veemente, tentando realizar a experiência disso dentro da sua mente, e você deve considerar o Sangha como companheiros nobres que o ajudam no processo do caminho. O Buda é o mestre que nos mostra o caminho para a iluminação, o Dharma é o verdadeiro refúgio no qual procuramos proteção contra os sofrimentos e o Sangha consiste de companheiros espirituais através das etapas do caminho.
Um dos benefícios do refúgio é que todas as más ações que você cometeu no passado podem ser purificadas, porque refugiar-se acarreta a aceitação da orientação do Buda, bem como seguir um caminho de ação virtuosa. Grande parte das ações negativas que você cometeu no passado pode ser aliviada ou reduzida e o seu estoque de mérito aumentado. Tendo procurado refúgio nas Três Jóias, estaremos protegidos não apenas contra o dano presente, mas também contra o dano do renascimento nos domínios inferiores de existência, e a total iluminação da Fraternidade Búdica pode ser rapidamente obtida. Não devemos desistir nunca das Três Jóias, mesmo se isso custar as nossas vidas. No Tibet, tem havido muitos casos nos quais os chineses tentaram forçar as pessoas a abandonarem a sua fé. Muitas pessoas reagiram dizendo que não poderiam desistir de sua fé e, em vez disso, escolheram desistir de suas vidas. Este é o verdadeiro comprometimento de quem se refugia.
Tsong-kha-pa diz que, se o seu medo e a sua convicção são meras palavras, então refugiar-se também é apenas palavras. Porém, se o seu medo e a sua convicção na capacidade das Três Jóias de protegê-lo contra este medo estão profundamente enraizados, então o seu refúgio também será muito poderoso.
Os próprios objetos dos refúgios alcançaram um estado que é totalmente livre do medo e do sofrimento. Se os próprios objetos não tivessem obtido esse estado, não teriam a capacidade de nos proteger, assim como uma pessoa que caiu não pode nos ajudar a levantar. Aquelas pessoas das quais procuramos proteção devem ser livres do sofrimento e do medo; de outro modo, mesmo que possam ter o desejo de fazê-lo, elas não terão a capacidade de nos protegerem. O Buda Shakyamuni não somente é livre do sofrimento e do medo, como também é extremamente habilidoso em liderar os seres sensíveis pelo caminho certo. Podemos compreender isso refletindo sobre os diversos ensinamentos que o Buda deu para se adequar aos diversos interesses e disposições dos seres sensíveis. Ele nos deixou ensinamentos que podem nos alcançar não importa qual seja o nosso nível de desenvolvimento espiritual. Quando compreendermos a importância disso, também começaremos a admirar todas as religiões do mundo, porque o verdadeiro objetivo do ensinamento delas é ajudar outras pessoas.
Tsong-kha-pa diz que, se você reflete sobre as grandes qualidades que tornam alguma coisa um objeto de refúgio e
desenvolve uma convicção profunda e centralizada nos três objetos de refúgio, não há jeito de não ser protegido. O que precisamos é de uma profunda sensação de medo dos sofrimentos dos domínios inferiores e de confiar na capacidade das Três Jóias de nos protegerem contra eles. Nós desenvolvemos esta confiança através da meditação sobre as qualidades do Buda, do Dharma e do Sangha.
A compaixão do Buda é sem preconceitos. Ele não faz distinção entre os seres sensíveis que o ajudam e aqueles que não o fazem. O seu trabalho em beneficio de todos os seres sensíveis é sem preconceitos. Estas qualificações só são completas no Buda e, portanto, ele e as suas muitas formas e emanações são o refúgio, juntamente com os ensinamentos que ele tem dado e com a comunidade que o imita e se engaja em sua maneira de praticar.
A fala do Buda é de tal ordem que, se lhe é feita qualquer pergunta ou muitas perguntas diferentes ao mesmo tempo, diz-se que ele é capaz de entender a essência de todas elas e que pode responder em uma única declaração. Em consequência, as respostas estão em harmonia com a compreensão de quem fez a pergunta.
A sabedoria do Buda é capaz de perceber toda a abrangência, convencional e absoluta, dos fenômenos, exatamente como se estivesse olhando alguma coisa na palma da sua mão. Conseqüentemente, todos os objetos do conhecimento são percebidos e estão ao alcance da sua sabedoria.
A mente do Buda também é onisciente. A razão pela qual é possível para uma mente de Buda perceber a esfera inteira dos fenômenos sem exceção é que ele alcançou um estado totalmente livre de todas as obstruções ao conhecimento. As obstruções ao conhecimento são as impressões ou predisposições deixadas na mente pelas ilusões — ignorância sobre a natureza da realidade, apego e rancor — desde o início dos tempos. Quando estas impressões são removidas, nos ganhamos o estado chamado de onisciência, porque não existe mais nenhuma obstrução ao conhecimento. Ganhamos o estado onisciente da mente que percebe todo o alcance dos fenômenos sem qualquer obstrução.
A mente do Buda é espontaneamente movida pela compaixão ininterrupta quando ele vê seres sensíveis sofrendo. No início do caminho, o Buda desenvolveu uma forte compaixão em relação a todos os seres sensíveis e, ao longo do caminho, trouxe aquela compaixão ao seu nível definitivo. Sendo um estado virtuoso da mente e baseada na clara natureza da mente, a compaixão tem o potencial de aumentar infinitamente.
O corpo, a fala e a mente dos Budas estão sempre ativamente envolvidos na tarefa de trabalhar pelo beneficio das outras pessoas. Eles realizam os desejos dos seres sensíveis e os conduzem através das etapas do caminho de uma maneira habilidosa apropriada às diversas necessidades, interesses e disposições dos seres sensíveis. Tsong-kha-pa diz que, se a sua fé no Buda é firme, em conseqüência da sua recordação da grande delicadeza e das outras qualidades dele, a sua fé nos outros dois, o Dharma, os ensinamentos dele, e o Sangha, a comunidade espiritual, virá naturalmente e todo o cânone das escrituras budistas será como um conselho pessoal. Portanto, tendo desenvolvido uma forte fé no Buda, você também deve desenvolver uma forte fé nos seus ensinamentos.
As estátuas ou imagens de um Buda, independentemente do seu material ou da sua forma, nunca devem ser criticadas. Você deve respeitá-las como o faria com o próprio Buda. Tendo-se refugiado no Buda, você não deve se preocupar com o material do qual a imagem é feita, mas respeitá-la de qualquer maneira. Você nunca deve transformar as estátuas de Buda em objetos de comércio ou usá-las como garantia para um empréstimo. Certa vez, um discípulo de Atisha lhe pediu para comentar sobre uma estátua de Manjushri, o Bodhisattva da Sabedoria, e disse que, se Atisha a considerasse boa, ele gostaria de comprá-la. Atisha disse que a pessoa não pode fazer julgamentos a respeito do corpo de Manjushri, mas que, no que dizia respeito à escultura, ela era bastante medíocre. Porém, depois ele colocou a estátua em sua cabeça como um sinal de respeito. Parece que, quando Atisha falou que a escultura era bastante medíocre, queria dizer que ela não parecia muito boa, portanto o artista deveria ser mais cuidadoso. Os artistas têm uma responsabilidade muito grande em pintar imagens e esculpir estátuas com uma boa aparência. Caso contrário, há um grave perigo de fazer muitas pessoas acumularem ações não-virtuosas, porque às vezes, devido à aparência estranha das imagens, não podemos evitar o riso.
O método que conduz ao estado onisciente é o caminho. O caminho e a cessação constituem o Dharma, o verdadeiro refúgio. O Dharma é algo que não podemos absorver imediatamente; precisa ser compreendido através de um processo gradual. No contexto da prática de refúgio, você precisa ter muito talento para ser virtuoso enquanto evita as ações negativas. Isto é o que é chamado de a prática do Dharma. Se você tem medo dos sofrimentos dos domínios inferiores de existência, deve transformar a sua mente e impedir que ela se entregue a ações negativas que causam a sua queda. Isso depende muito do fato da sua prática ser ou não séria e do seu comprometimento em acumular ações virtuosas e evitar as ações negativas, o que, por sua vez, depende do fato de você ter ou não uma profunda convicção na lei do karma.
Existem dois tipos diferentes de experiência, a desejável e a indesejável, e cada um deles tem a sua própria causa. O sofrimento, que é a experiência indesejável, é chamado de o ciclo da existência (samsara) e tem a sua origem nas ilusões e nas ações não-virtuosas que elas nos impelem a cometer. A forma definitiva de felicidade, que é a experiência desejável, é o nirvana e resulta da prática do Dharma. A origem dos sofrimentos e dos domínios inferiores de existência são as dez ações negativas (descritas no Capítulo 7). A prosperidade desejada e o renascimento em domínios favoráveis de existência são causados pela observância da moralidade pura ou da prática das dez ações virtuosas. Para evitar o seu renascimento em domínios inferiores de existência e ter de suportar o sofrimento lá, você precisa pôr um fim às suas causas dirigindo o seu corpo, a sua fala e a sua mente para as ações virtuosas. O grau do seu comprometimento com a prática séria depende muito de quão convencido você está, de quão profunda é a sua convicção na lei de causa e efeito, de quão completamente você acredita que os sofrimentos e as infelicidades indesejáveis são consequências de ações negativas e de quão convencido você está de que as conseqüências desejáveis, como a felicidade, a satisfação e a prosperidade, são os resultados das ações positivas. Portanto, em primeiro lugar, é muito importante desenvolver uma profunda convicção na infalibilidade da lei do karma.
Tendo se refugiado no Dharma, como um compromisso de afirmação, a pessoa deve demonstrar respeito aos textos budistas. Você não deve pular nem mesmo uma única página e os textos devem ser mantidos em um local limpo. Você não deve ter uma atitude possessiva em relação às escrituras; não deve vendê-las ou dá-las como garantia para pegar dinheiro emprestado. Não deve colocar os seus óculos ou as suas canetas em cima das escrituras. Quando virar a página, não deve lamber o seu dedo. Diz-se que Geshe Chen-ngawa costumava se levantar quando via os textos sendo transportados e, posteriormente, como não podia mais se levantar devido à sua idade ainda costumava curvar as suas mãos. Quando Atisha estava no Tibet ocidental, havia um praticante tântrico que não queria ser ensinado por ele. Um dia, Atisha viu um outro tibetano marcando o lugar do texto que estava lendo enquanto palitava os dentes. Atisha pediu a ele que não fizesse aquilo e, em conseqüência, o praticante tântrico viu o comprometimento de Atisha com os preceitos de se refugiar, ficou muito impressionado e tornou-se discípulo dele.
Nós também devemos ter fé no Sangha, a comunidade espiritual. Quando falamos sobre o Sangha, referimo-nos principalmente àqueles seres superiores que, como um resultado de sua prática diligente, compreenderam o Dharma dentro de suas próprias mentes e penetraram a natureza da realidade. O verdadeiro Sangha são aquelas pessoas que estão sempre engajadas na prática do Dharma, que preservam os preceitos adequadamente, que são excelentes na sua observância da moralidade, que são sempre confiáveis, honestos e puros de coração e que estão sempre cheios de compaixão.
Tendo se refugiado no Sangha, você nunca deve insultar um monge ou uma monja que mantém a vida ordenada. Deve ser respeitoso com eles. Dentro da comunidade Sangha, você não deve ser sectário ou ter qualquer rivalidade. Em lugares como a Tailândia, o Sangha é mantido com grande respeito. Como as pessoas os respeitam, em contrapartida os monges não devem se comportar deselegantemente para não causar nos leigos a perda da fé. Em geral, não acho que seja necessariamente bom haver uma grande comunidade de monges, como havia no Tibet, mas é melhor haver monges verdadeiramente puros, mesmo que seja apenas uma pequena comunidade. Tornar-se ou não um monge é uma questão de escolha pessoal. Porém, tendo escolhido levar a vida de monge ou monja, naturalmente é melhor não ser uma vergonha para a doutrina. Caso contrário, não somente é ruim para você como também pode fazer com que outras pessoas percam a sua fé e acumulem desnecessariamente ações não-virtuosas. Diz-se que Drom-ton-pa nem sequer passaria por cima de um pequeno pedaço de pano vermelho ou amarelo, porque representava as vestes de monges e monjas.
Tsong-kha-pa diz que refugiar-se é realmente a entrada para a comunidade budista, e se o nosso refúgio é mais do que simples palavras e é realmente sentido em profundidade, seremos invulneráveis aos males provindos dos seres humanos e mais facilmente faremos progresso em nossa prática. Compreendendo estes benefícios, devemos tentar reforçar o nosso medo do sofrimento e desenvolver uma forte fé e convicção na capacidade das Três Jóias de nos proteger desses sofrimentos. Devemos tornar a nossa prática do refúgio tão poderosa quanto possível e tentar nunca agir contra os preceitos que assumimos. Assim, com a consciência da morte e o medo dos domínios inferiores da existência, descobriremos que as Três Jóias têm a capacidade de nos proteger, que são uma verdadeira fonte de refúgio.
O Buda é o mestre que revela o verdadeiro refúgio e o Sangha são os companheiros no caminho que conduz à iluminação. O verdadeiro refúgio é o Dharma, porque através da compreensão do Dharma nos tornaremos livres e seremos aliviados do sofrimento. O Dharma consiste da cessação e do caminho para a cessação. A ausência ou a libertação das ilusões é chamada de cessação. Se não aplicarmos o antídoto apropriado, as nossas falhas e ilusões continuarão a surgir. Porém, depois da aplicação do antídoto, uma vez que uma ilusão seja totalmente desenraizada, nunca surgirá novamente. Este estado livre das ilusões ou das manchas da mente é chamado de cessação. Em resumo, qualquer coisa que queiramos abandonar, tal como o sofrimento e sua origem, pode ser eliminada por intermédio da aplicação de forças opostas. A cessação final, também conhecida como nirvana, é um estado de completa libertação.
Os Budas, os totalmente iluminados, são inconcebíveis; o Dharma, o ensinamento deles, é inconcebível e o Sangha também é inconcebível. Portanto, se você desenvolver uma fé inconcebível, o resultado também será inconcebível. Está dito nas escrituras que se os benefícios de se refugiar nas Três Jóias pudessem se tornar visíveis, todo o universo seria pequeno demais para contê-los, assim como os grandes oceanos não podem ser medidos com as suas mãos. Tendo em mente estes grandes benefícios, você deveria alegrar-se com a oportunidade de fazer oferendas às Três Jóias e de refugiar-se nelas. Você será capaz de aliviar as influências de ações negativas cometidas, além de obstruções kármicas. Todas elas serão eliminadas e você será considerado como um ser sublime, o que agradará às Três Jóias.


CAPÍTULO 7
KARMA

As conseqüências do karma são definidas: ações negativas sempre trazem sofrimento e ações positivas sempre trazem felicidade. Se você fizer o bem, terá felicidade; se fizer o mal, você mesmo vai sofrer. As nossas ações kármicas nos acompanham vida após vida, o que explica a razão de algumas pessoas, que constantemente se entregam à negatividade, ainda assim serem bem-sucedidas no nível mundano e de outras pessoas, que estão comprometidas com a prática espiritual, enfrentarem muitas dificuldades. As ações kármicas têm sido cometidas em um número infinito de vidas, portanto, existe um potencial infinito para um número infinito de conseqüências.
No decorrer do tempo, o potencial do karma sempre aumenta. Pequenas sementes têm o potencial de produzir grandes frutos. Isto também é verdadeiro no que se refere à causa e ao efeito interior; mesmo uma pequena ação pode ter uma grande conseqüência, positiva ou negativa. Por exemplo, um menininho certa vez ofereceu ao Buda um punhado de areia imaginando sinceramente ser ouro. Em uma vida futura, o menino renasceu como o grande imperador budista Ashoka. Da mais ligeira ação positiva pode advir a conseqüência maior de felicidade. Do mesmo modo, a menor ação negativa pode trazer um sofrimento muito intenso. O potencial que o karma tem de aumentar dentro do nosso fluxo mental é muito maior do que o potencial de meras causas físicas, tal como uma semente de maçã. Assim como gotas de água podem encher um grande vaso, do mesmo modo as menores ações, quando continuamente cometidas, podem encher as mentes dos seres sensíveis.
Dentro da comunidade humana, percebemos muitas diferenças. Algumas pessoas são sempre bem-sucedidas em suas vidas, algumas nunca têm sucesso, algumas são felizes, algumas têm uma boa presença e paz de espírito. Algumas pessoas parecem estar sempre enfrentando grande infelicidade, contra as nossas expectativas. Algumas pessoas que você poderia esperar que fossem infelizes não o são. Tudo isso testemunha o fato de que nem todas as coisas estão em nossas mãos. Às vezes, quando tentamos iniciar um empreendimento, acumulamos todas as condições necessárias que são requeridas para o seu sucesso, mas ainda assim alguma coisa fica faltando. Dizemos que alguém é sortudo e que alguém é azarado, mas só isso não é suficiente. A sorte deve ter uma razão, uma causa. De acordo com a explicação budista, a sorte é a conseqüência de suas ações cometidas ou na vida passada ou na parte anterior desta vida. Quando o potencial amadureceu, então mesmo se você estiver enfrentando circunstâncias adversas, ainda assim o empreendimento alcança o êxito. Porém, em alguns casos, mesmo que você tenha reunido todas as condições necessárias, ainda assim você fracassa.
Nós, tibetanos, nos tornamos refugiados e passamos por muitos sofrimentos, mas ainda assim somos relativamente afortunados e bem-sucedidos No Tibet, os chineses tentaram igualar toda a população criando comunas e limitando a propriedade privada. Mesmo assim, nas comunas, algumas hortas dão mais legumes do que outras e algumas vacas dão mais leite. Isso mostra que há uma grande diferença entre os méritos dos indivíduos. Se as ações virtuosas de uma pessoa amadurecem, mesmo que as autoridades confisquem a sua riqueza, esta pessoa será bem-sucedida por causa da força de seu mérito, por causa da força daquele karma. Se você acumula adequadamente ações virtuosas, tal como evitar matar, libertar animais e cultivar a paciência em relação aos outros, isto será benéfico no futuro e nas vidas futuras, ao passo que, se você se entrega continuamente a ações negativas, com certeza enfrentará as conseqüências no futuro. Se você não acredita no princípio do karma, então pode fazer como quiser.
Uma vez que você comete uma ação, a causa para uma reação permanece e aumenta até que o seu efeito seja vivenciado. Se você nunca cometeu a ação, nunca enfrentará as conseqüências. Uma vez que você cometeu a ação, a não ser que a purifique através das práticas apropriadas, ou se é uma ação virtuosa, ou que seja destruída pela raiva ou por fatores contrários, o efeito da ação será vivenciado. Uma ação, mesmo se foi executada há muitas vidas atrás, nunca perderá o seu efeito simplesmente por causa da passagem do tempo.
As ações positivas e negativas são determinadas pela própria motivação de cada pessoa. Se a motivação for boa, todas as ações se tornam positivas; se a motivação for errada, todas as ações se tornam negativas. As ações kármicas são de muitos tipos diferentes. Algumas são totalmente virtuosas, algumas são totalmente não-virtuosas e algumas são mistas. Se a motivação for certa, embora a ação em si possa parecer bastante violenta, causará felicidade, ao passo que, se a motivação for errada e desonesta, então mesmo que a ação possa parecer benéfica e positiva, na realidade será uma ação negativa. Tudo depende da mente: se a sua mente é domada e treinada, todas as ações se tornam positivas; ao passo que, se a sua mente é indômita e constantemente influenciada pelo desejo e pelo rancor, embora as ações possam aparentemente ser positivas, na realidade você vai acumular karma negativo. Se mais pessoas acreditassem na lei do karma, nós provavelmente nunca precisaríamos ter uma força policial ou um sistema penal. Porém, se falta nos indivíduos esta fé interior nas ações kármícas, mesmo que externamente o povo possa aplicar todo tipo de técnicas para executar a lei, não conseguirá criar uma sociedade pacífica. Neste mundo moderno, usam-se sofisticados equipamentos para a vigilância e para detectar os infratores da lei. Porém, quanto mais essas máquinas se tornam fascinantes e sofisticadas, tanto mais sofisticados e determinados se tornam os criminosos. Se é para esta sociedade humana mudar para melhor, então impor uma lei só externamente não será o suficiente. Precisamos de algum tipo de desencorajamento interior.
Um modo de vida civilizado e pacífico e uma moralidade baseada na espiritualidade deveriam andar de mãos dadas. Antes da invasão dos chineses em 1959, os reis do Tibet criaram leis para o país baseadas no conceito budista de moralidade. Pessoas de todas as partes do mundo dizem que o povo tibetano é excepcionalmente gentil e benevolente. Não vejo nenhuma outra razão que explique esta característica própria da nossa cultura se não o fato de que foi baseada no ensinamento budista da não-violência por tantos séculos.
Existem três portas através das quais cometemos ações:
o corpo, a fala e a mente. Por estas portas, podemos cometer ou as dez ações positivas ou as dez ações não-virtuosas. Das ações
não-virtuosas, três são físicas, quatro são verbais e três são mentais. A primeira ação física não-virtuosa é tirar a vida de outra pessoa. Para que um assassinato aconteça, deve haver um outro ser vivo. Tirar a sua própria vida não é considerado do mesmo modo, porque nenhuma outra pessoa está envolvida. Se você tem a motivação inicial de matar uma determinada pessoa, mas, se no momento da realização do ato de matar, acontece de você matar uma outra pessoa por engano, então isso não constitui uma ação de matar completamente não-virtuosa. Por outro lado, quando a sua motivação inicial é a de matar qualquer pessoa que você encontre, então, se você mata alguém, isso constitui acumulação completa de uma ação não-virtuosa de matar.
O assassinato pode ser motivado por qualquer um dos três venenos: apego, rancor ou ignorância. Por exemplo, podemos matar animais devido ao apego pela carne deles. Podemos matar inimigos devido ao rancor e podemos realizar sacrifícios de animais devido à ignorância. Não importa se você realiza a ação por si mesmo ou se deixa que outras pessoas o façam por você; ambas constituem a mesma ação negativa de matar. Para que a ação de matar seja completa, a pessoa deve morrer antes do matador.
A segunda ação negativa é roubar. O roubo pode ser motivado pelo apego ou você pode roubar por ódio a alguém, para prejudicar esta pessoa. O ato de roubar também pode ser motivado pela ignorância devida a uma crença errônea de que você pode pegar qualquer coisa que queira. A intenção é separar o bem do seu proprietário. O roubo pode ser feito através da força ou do furto. Você pode pegar uma coisa emprestada, deixar o dono esquecer e depois ficar com ela ou você pode pedir dinheiro emprestado e depois não o devolver. A ação se completa quando você acha que agora o objeto pertence a você. Mesmo que não o faça diretamente, deixar outras pessoas fazerem por você, ainda assim constitui roubo.
A última das três ações negativas do corpo é a má conduta sexual, que é um ato sexual realizado com uma pessoa imprópria, com uma parte imprópria do corpo, em um momento impróprio, em um lugar impróprio, ou contra a vontade da outra pessoa — o que naturalmente inclui o estupro. Para um homem, mulheres impróprias incluem: a própria mãe, a esposa ou namorada de outra pessoa, prostitutas temporariamente pagas por outra pessoa, as próprias parentas e mulheres ordenadas como as monjas. Outros homens também estão incluídos. As partes impróprias do corpo são o ânus e a boca. Os lugares impróprios são: perto da residência do mestre espiritual da pessoa, perto de uma estupa, dentro de um templo ou na presença dos próprios pais. Para um homem, o momento impróprio é quando a mulher está menstruada, quando está grávida e quando ela está sofrendo de uma enfermidade que, com a relação sexual, possa piorar. Se um homem se envolve em relações sexuais em uma dessas situações, mesmo que seja com a sua própria esposa, diz-se que está tendo uma má conduta sexual. De um modo geral, o envolvimento sexual se dá pelo apego, mas uma pessoa também poderia fazê-lo movida pelo rancor, tal como um homem que dorme com a esposa de um inimigo. As vezes, também é devido à ignorância, pensando que, através da relação sexual, pode obter grandes realizações. A ação negativa da má conduta sexual só pode ser cometida pela própria pessoa e o ato torna-se definido quando os dois órgãos sexuais se encontram.
As próximas quatro ações negativas são ações da fala. A primeira é falar mentiras. Isto incluí falar o contrário do que a pessoa vê, ouve ou sabe que é verdadeiro. A mentira pode ser motivada pelo apego, pelo rancor ou pela ignorância. A intenção é confundir a outra pessoa e isso pode ser feito ou através da fala ou através de um gesto com a cabeça ou com a mão. Qualquer ação feita com a intenção de confundir alguém constituí a ação negativa da mentira. O ato se completa quando a outra pessoa ouve a mentira.
A segunda é a conversa divisória. A intenção é causar discórdia entre amigos ou pessoas na comunidade espiritual pelo próprio bem da pessoa ou pelo bem de outras pessoas. Quer a pessoa seja bem-sucedida ou não em causar a discórdia, o momento em que a outra pessoa ouve a conversa divisória constitui a finalização do ato.
A terceira é a ofensa verbal. A intenção é a de falar asperamente e a ação se completa quando as palavras ofensivas são ouvidas pela pessoa a quem elas são dirigidas. A ofensa inclui insultar outras pessoas, falar sobre os defeitos delas, quer sejam verdadeiros ou não; se a pessoa faz isso para magoar a outra pessoa, isto é ofensa.
A quarta é a fofoca sem sentido. Isto é frivolidade sem qualquer propósito e pode ser motivado por qualquer um dos três venenos. A intenção da pessoa é simplesmente falar sem qualquer razão, apenas fofocar sem qualquer propósito. A execução desse ato não requer uma segunda pessoa. Você não precisa de um parceiro; pode fazer isso falando para si mesmo. As fofocas fúteis incluiriam falar sobre guerras, sobre as falhas das outras pessoas ou discutir apenas por amor à argumentação. Isso também incluiria ler livros sem importância.
Por último, há as três ações negativas da mente, a primeira sendo a cobiça. O objeto da cobiça são as posses pertencentes a outras pessoas. A ilusão que estimula a cobiça pode ser qualquer um dos três venenos — o desejo, o rancor ou a ignorância. Completar esta não-virtude envolve cinco fatores: forte apego em relação às posses de outras pessoas, o desejo de acumular riqueza, cobiçar as posses de uma outra pessoa, desejar para si mesmo as posses de uma outra pessoa e não perceber o dano em cobiçar os pertences dos outros. Se estes cinco fatores estão presentes, então, quando a pessoa cobiça alguma coisa, isso completa a execução deste ato mental.
A outra ação negativa da mente é a intenção prejudicial, que é semelhante à fala ofensiva. A intenção é magoar alguém, falar asperamente ou esperar que outras pessoas sofram infortúnios e fracassem em suas atividades. Uma vez que a pessoa se entrega a tais pensamentos, a conseqüência ou a finalização é ou você atingir fisicamente a pessoa ou pretender fazê-lo mentalmente. Isso também requereria cinco fatores: que a pessoa tenha como motivação básica o rancor ou a raiva; que tenha falta de paciência; que não compreenda as faltas provenientes da raiva; que realmente pretenda prejudicar a outra pessoa e que não compreenda os erros da intenção prejudicial o suficiente para dominá-la. Simplesmente desejar que a outra pessoa sofra é intenção prejudicial.
A última das dez ações negativas são as visões errôneas ou perversas nas quais a pessoa nega a existência de coisas que existem. Geralmente, há quatro tipos de visões errôneas: visões errôneas com respeito à causa, com respeito ao efeito, com respeito à função de uma coisa e com respeito à existência de uma coisa. A visão errônea com respeito à causa seria acreditar que não existe ação kármica; com respeito ao efeito seria acreditar que determinadas ações não têm conseqüências; com respeito à função seria pensar que os filhos não são educados por seus pais e que as sementes não produzem os seus resultados e também pensar que não existe vida passada ou vida após a morte. O quarto tipo de visão errônea diz respeito às coisas existentes — por ignorância ou apego, acreditar que os seres iluminados, o nirvana e as Três Jóias não existem. Tsong-kha-pa diz que, embora haja muitos tipos diferentes de visões errôneas, estas visões errôneas realmente cortam a raiz da acumulação de virtudes de uma pessoa e, em conseqüência, força o indivíduo a se entregar às ações negativas sem nenhum controle. Por isso, as visões errôneas sobre as Três Jóias e sobre a lei de causa e efeito são consideradas as maiores de todas.
Nós também devemos estar conscientes da gravidade relativa das ações kármicas. Quando a ação é motivada por ilusões muito fortes, então ela é considerada muito grave. A maneira pela qual a ação é realmente executada também determina o peso kármico. Por exemplo, se um assassinato é cometido com grande prazer, primeiro torturando a pessoa e depois ridicularizando e insultando a pessoa, ele é considerado muito grave, devido à maneira desumana pela qual aquela pessoa ou ser vivo foi morta. Se a mente do assassino não tem consciência ou senso de vergonha, então, porque lhe faltam as forças contrárias, a ação negativa de matar é muito grave. Se a sua matança de um ser vivo é motivada pela ignorância, tal como fazer uma oferenda sacrificial, achando que esta matança é realmente um ato religioso e que não constitui uma ação negativa, então isso é considerado muito grave.
Em geral, quanto mais você realiza determinadas ações negativas, mais grave o ato se torna. O peso do karma também depende da pessoa que realiza a ação. Se você dedica o seu mérito em benefício dos outros seres sensíveis com o objetivo de alcançar a iluminação, ele é considerado mais poderoso, ao passo que, se ele for dedicado a objetivos menores, é considerado menos poderoso. Isso também se aplica à ação negativa. Quanto mais poderosas forem as ilusões motivadoras, mais poderosa é a ação kármica e, entre todas estas ilusões, a raiva é considerada a mais poderosa. Um único momento de raiva dirigido a um bodhisattva destruiria toda a coleção de virtudes que você possa ter acumulado nas últimas mil eras.
O efeito das ações negativas também se baseia na intensidade das ilusões que as estimularam. Também existem efeitos que correspondem à causa. Por exemplo, em conseqüência de um assassinato, mesmo quando, após renascer nos domínios inferiores de existência, a pessoa renasce como um ser humano, a sua vida será curta. Em consequencia de haver roubado, a pessoa não terá riqueza material; em consequencia da má conduta sexual, a pessoa terá um cônjuge muito infiel; em conseqüência da fala ofensiva, as pessoas o insultarão; em consequencia da fala divisória, haverá discórdia entre os amigos da pessoa, e assim por diante. Um outro tipo de efeito é o comportamento instintivo. Em conseqüência de um assassinato em
uma vida passada, mesmo como um ser humano, a pessoa teria impulsos instintivos, sentindo prazer em matar. Existem também efeitos ambientais, que amadurecem mais coletivamente para uma comunidade. Por exemplo, em consequencia de uma matança, a pessoa teria de viver em um lugar no qual as safras não são muito boas, as colheitas não são abundantes, o território é muito desolado, o clima não é muito bom, cheio de árvores e espinhos venenosos. Como um efeito ambiental do roubo, um fazendeiro não teria safras bem-sucedidas. Como um efeito ambiental de visões errôneas, a pessoa não teria proteção e nenhum refúgio.
Se, como um resultado da moralidade, a pessoa se abstém e resolve não se entregar às ações negativas, isto constitui acumulação de ações positivas. Entretanto, se a pessoa não tem a habilidade ou a capacidade de se entregar às ações negativas, isto não quer dizer que acumulou ações virtuosas. As ações virtuosas só podem ser acumuladas quando a pessoa tem a habilidade e a capacidade de cometer ações negativas mas não o faz devido à restrição moral.
Algumas ações são cometidas mas não intencionalmente, como as mortes acidentais, matar em sonhos ou fazer alguma coisa contra a vontade da pessoa. Nestes casos, a ação é cometida mas o karma não é acumulado; a finalização da ação kármica não acontece, porque falta o fato necessário da intenção. Por outro lado, se você estimula alguém a cometer um ato não-virtuoso em seu nome, então é você que acumula o karma negativo.
O resultado de uma ação pode amadurecer nesta vida, na próxima vida ou após um intervalo de muitas vidas. Algumas ações realizadas por ignorância ou por rancor intenso são tão graves que irão produzir os seus resultados até mesmo nesta vida. Este também é o caso com algumas ações positivas. Se você tem forte compaixão pelos seres sensíveis, se você se refugia fortemente nas Três Jóias e se retribui a delicadeza do mestre espiritual e dos seus pais, os frutos dessas ações são considerados tão poderosos que começarão a amadurecer nesta vida.
A obtenção de uma forma humana é o resultado principalmente de observar a pura moralidade e de abster-se das dez ações negativas. Entretanto, para obter uma forma humana dotada com as condições que irão apressar o processo da pessoa no caminho, outros fatores são necessários. Eles incluem uma longa vida para a conclusão da prática do Dharma. Também ajuda ter um corpo saudável e bonito, bem como nascer em uma família respeitável, porque então você atrairia naturalmente um grande respeito das pessoas e teria uma influência maior. Outros fatores que são mencionados nos textos são ter uma fala confiável e um corpo e uma mente vigorosos para que você não seja vulnerável às interferências. Com uma forma atraente, sem qualquer dificuldade, a simples visão de você irá atrair discípulos e fará com que eles tenham uma grande confiança em você. Sendo proveniente de uma família respeitada, as pessoas irão ouvi-lo e prestar atenção ao seu conselho. Você será capaz de reunir muitas pessoas sob a sua influencia dando-lhes auxílio material e, devido à sua fala confiável, você fará com que outras pessoas tomem o que você diz como verdadeiro. Tudo o que você disser será realizado rapidamente, da maneira como você desejou, exatamente como quando um rei dá uma ordem. Você não terá medo ou vergonha de ensinar o Dharma para uma grande multidão de pessoas e haverá menos obstáculos para a prática do Dharma. Tendo um corpo e uma mente vigorosos, você será capaz de suportar grande cansaço físico e não terá nenhum arrependimento ou frustração com relação a trabalhar para realizar qualquer uma das suas próprias metas ou das de outras pessoas.
Cada uma dessas várias qualidades tem uma causa cármica específica. A causa de uma vida longa é sempre o fato de ter uma atitude altruísta e de auxílio, nunca prejudicando outras pessoas. A causa de um corpo forte e sadio é dar aos outros roupas novas e abster-se de perder a paciência. O nascimento em uma família respeitada é o resultado de sempre ser humilde, nunca ser orgulhoso e ver a si mesmo como um servidor do seu próprio mestre e dos seus próprios pais. A causa da grande riqueza é dar ajuda material a pessoas pobres e a causa da fala confiável é abster-se de ações negativas da fala. Ter grande influência é o resultado de fazer oferendas às Três Jóias, aos seus próprios pais, aos seus mestres e assim por diante. Ter um corpo e uma mente poderosos é o resultado de dar alimento e bebida a outras pessoas. Se você acumular estas causas, conseguirá a extraordinária existência humana com aquelas qualidades.
Se permanecermos indolentes e não pensarmos seriamente sobre a lei kármica, podemos às vezes ter a impressão de que não estamos acumulando quaisquer ações negativas e de que somos bons praticantes. No entanto, se analisarmos os nossos pensamentos e ações detalhadamente, descobriremos que estamos envolvidos em conversas fúteis, prejudicando outras pessoas e nos deixando levar pela cobiça diariamente. Descobriremos que, na realidade, nos falta o fator principal de convicção profunda que é necessário para realmente seguirmos a lei do karma. Precisamos perceber a lacuna que existe entre a prática do Dharma e o modo como vivemos as nossas vidas no momento. Para preencher a lacuna, integre o conhecimento da lei de causa e efeito às suas ações. Se você perceber o perigo potencial do seu modo de pensar e agir, então cultivará repetidamente a resolução de corrigir os seus pensamentos e o seu comportamento.
Tsong-kha-pa diz que, embora devamos fazer grande esforço para não os entregarmos nunca mais a estas ações negativas, como um resultado da nossa longa associação com ilusões, às vezes nos descobrimos as tendo cometido incontrolavelmente. Isso não deve ser negligenciado. Pelo contrário, devemos praticar as técnicas de purificação que o próprio Buda recomendou. Ele disse que, aplicando quatro poderes contrários, seremos capazes de purificar a negatividade que já foi cometida e poderemos superá-la. O primeiro é o poder do arrependimento. Refletindo sobre a gravidade das conseqüências de ações negativas, você deveria, do fundo do seu coração, desenvolver um profundo senso de arrependimento pelas ações cometidas. O segundo é o poder da purificação. Isso pode ser alcançado através de uma variedade de técnicas, incluindo recitar, memorizar e ler sutras, meditar sobre o vazio, recitar mantras, fazer imagens do Buda, fazer oferendas e recitar os nomes dos Budas. Estas práticas de purificação devem ser realizadas até que você perceba sinais e indicações de sucesso nas suas práticas de purificação. Estes sinais incluem ter sonhos de vomitar, ter sonhos de beber leite ou coalhada, ver o sol e a lua em um sonho, sonhar que está voando ou com fogo queimando ou com búfalos esmagadores ou pessoas com casacos pretos, com monges e monjas, sonhar que está escalando montanhas e escutando ensinamentos. Estas são indicações de sucesso na sua prática de purificação.
O terceiro é o poder de decidir não se envolver, no futuro, com a ação não-virtuosa. Se você tem o poder de decisão e se abstém de cometer as dez ações negativas, não somente será capaz de purificar as negatividades das dez ações não-virtuosas como também terá o poder de purificar as ilusões e as impressões por elas deixadas. Se o seu poder de decisão é muito superficial, a sua prática de purificação também será superficial. O último poder é meditar sobre refugiar-se no Buda, no Dharma e no Sangha e desenvolver o desejo de tornar-se iluminado por amor a todos os seres sensíveis.
Se uma ação negativa é cometida e não é purificada, ela terá o potencial de causar o renascimento nos domínios inferiores de existência. As ações negativas ou podem ser totalmente purificadas no sentido de que o seu potencial seja totalmente destruído ou o seu potencial de causar o renascimento nos domínios inferiores de existência será destruído, mas elas podem se manifestar como simples dores de cabeça nesta vida. Isto é, quaisquer ações negativas que, de outro modo, trariam as suas conseqüências durante um longo tempo, podem ser vivenciadas em um curto período de tempo. Estes resultados dependem do praticante ser ou não habilidoso na prática de purificação, dos quatro poderes estarem ou não completos, de quão intensa é a prática e de há quanto tempo esta prática de purificação está sendo realizada. Em alguns casos, o potencial da ação kármíca é destruído; em outros casos, pode se manifestar em experiências mais leves. Você não deve tomar isso como sendo contraditório à declaração das escrituras de que as ações kármícas, uma vez cometidas, nunca perderão o seu potencial, mesmo em cem eras. Isso significa que, se as ações kármicas, uma vez cometidas, não forem purificadas, elas nunca perderão o seu potencial só por causa da passagem do tempo. Não existe ação que não possa ser purificada. A purificação destrói o potencial das ações kármicas negativas do mesmo modo que as ações positivas perdem o seu potencial devido ao aparecimento da raiva. Porém, o Buda disse que você não pode nunca purificar uma ação kármica uma vez que ela já tenha produzido os seus resultados. Por exemplo, as experiências negativas que tivemos nesta vida são efeitos de ações negativas cometidas no passado — ações que já ocorreram; estas você não pode purificar de maneira alguma.
Tsong-kha-pa diz que, já que é possível que as ações positivas percam o seu potencial pelo aparecimento dos seus contrários, como a raiva, devemos não somente sermos muito cautelosos em acumular virtudes como também igualmente cautelosos em protegê-las após termos, um dia, as acumulado. Isso é feito dedicando o nosso mérito em alcançarmos a iluminação ao objetivo de alcançar a Fraternidade Búdica. Diz-se que, uma vez que você dedicou o seu mérito para o atingimento de tais metas, então, até você realizar aquela meta, a ação virtuosa que acumulou nunca perderá o seu potencial. É como depositar o seu dinheiro em um banco inviolável pelos ladrões — que, neste caso, seriam a raiva, o apego ou a ignorância.
Embora, através da aplicação das forças contrárias apropriadas, possamos purificar totalmente as negatividades e destruir o seu potencial de causar conseqüências indesejáveis, é muito melhor, em primeiro lugar, simplesmente não cometer estas ações negativas. Portanto, é melhor, desde o início, nunca se entregar a elas, nunca macular a sua mente com tais ações negativas. Tsong-kha-pa diz que é análogo a alguém quebrando uma perna: mais tarde, ela se cura, mas comparada a uma perna que nunca foi quebrada é muito diferente.
Algumas pessoas podem pensar que, já que em outras escrituras a prosperidade e os benefícios desta vida no interior do samsara são descritos como objetos a serem evitados e renunciados, não seja conveniente para um praticante desejar ganhar formas favoráveis de existência, porque isso também é uma vida no interior do samsara. Esta é uma atitude muito errada. Quando falamos de metas, elas são de dois tipos: metas temporárias e metas definitivas. As metas temporárias incluem alcançar a preciosa forma humana na próxima vida. Fundamentado em tal preciosa forma humana, você seria capaz de levar adiante a sua prática do Dharma a fim de que possa finalmente realizar a sua meta definitiva de alcançar a iluminação. Embora para um praticante Mahayana a meta definitiva seja trabalhar pela obtenção da onisciência para o bem de outros seres sensíveis, também é necessário para um praticante desejar ganhar um renascimento favorável no futuro, tal como a existência humana, para que possa continuar praticando. Shantideva diz que a preciosa vida humana deveria ser pensada como uma nave na qual se pode cruzar o oceano do samsara. A fim de realizar a meta definitiva de alcançar o estado Onisciente, você deve atingir a preciosa forma humana em muitas vidas. A causa básica de alcançar tais formas favoráveis de renascimento é a prática da moralidade.
Após desenvolver o desejo de assumir a prática do Dharma, é muito difícil para a maioria das pessoas renunciar totalmente ao mundo. O melhor tipo de praticante renuncia à vida mundana e passa o resto de sua vida em uma prática isolada e solitária. Isto é realmente recomendável e tem grandes benefícios, mas, para a maioria de nós, é muito difícil assumir uma prática como esta. Você também precisa pensar na sua própria vida e trabalhar dentro da comunidade e servir às pessoas. Você não deveria se preocupar totalmente com atividades mundanas; deveria também despender muita energia e tempo na prática do Dharma dirigida para o aprimoramento da sua vida futura. Você começa a compreender que, comparados ao seu destino futuro, os assuntos desta vida não são tão importantes.
Refugiando-se e vivendo dentro da lei kármica, fazendo esforço para abandonar as ações negativas e acumular ações positivas, você pode desfrutar um renascimento favorável no futuro. Entretanto, não devemos nos satisfazer só com aquilo, porque aquele renascimento favorável, como um lugar no samsara, faz parte da natureza do sofrimento. Em vez disso, deveríamos cultivar a percepção de que todas as formas de existência dentro deste ciclo de existência faz parte da natureza do sofrimento. Desde o início dos tempos, temos tido este apego instintivo à prosperidade do samsara e nunca fomos capazes de perceber os prazeres do samsara pelo que eles são: sofrimentos reais e genuínos. Uma vez que os prisioneiros não sabem que estão na prisão e não percebem a vida de prisioneiro como difícil e dolorosa de suportar, não irão desenvolver nenhum desejo genuíno de se livrarem da prisão. O mesmo é verdadeiro com o samsara:
enquanto você não for capaz de perceber as imperfeições da vida dentro deste ciclo de existência, nunca irá desenvolver um desejo genuíno de ganhar o nirvana, a libertação do samsara.
Você não deve ter a noção errada de que o Budismo é pessimista. Ao contrário, é muito otimista, porque o objetivo de cada indivíduo é a iluminação total, a qual traz uma felicidade total e duradoura. O Budismo nos lembra que isso é possível para todas as pessoas. Os prazeres do samsara parecem temporariamente desejáveis, mas não podem nunca nos satisfazer, não importa quanto tempo nós os desfrutamos, e não são confiáveis, porque estão sujeitos à mudança. Em contraste à satisfação e à felicidade do nirvana, que são definitivas, permanentes e eternas, estes prazeres e esta felicidade dentro do samsara tornam-se insignificantes.


AS QUATRO VERDADES

Para construir um desejo sólido de libertação do ciclo de existência, devemos examinar detalhadamente a nossa condição e considerar as razões para querer escapar. A primeira coisa a reconhecer é que os nossos corpos e as nossas mentes são predispostos ao sofrimento. As Quatro Verdades Nobres —o primeiro ensinamento do Buda — abordam este assunto diretamente. Estas verdades são a verdade do sofrimento, a verdade da origem do sofrimento, a verdade da cessação do sofrimento e a verdade do caminho que leva à cessação. A decisão do Buda de ensinar as verdades nesta seqüência tem grande importância para a nossa prática. Para enfatizar a importância da compreensão de que o que normalmente consideramos como felicidade é, de fato, sofrimento, o Buda ensinou primeiro a verdade do sofrimento.
Quando você percebe que caiu em um oceano de sofrimento, irá desenvolver o desejo de se libertar daquele sofrimento. Com este objetivo, primeiro você irá ver que é necessário eliminar a origem do sofrimento. Quando você procura a origem do sofrimento, encontra as ilusões e as ações kármicas. Então, será capaz de perceber que o ciclo de existência e os seus sofrimentos são produzidos pelas suas próprias ações kármicas, que, por sua vez, são impelidas pelas ilusões, as quais estão enraizadas na crença errônea na solidez ou na existência inerente do ego. Se analisarmos como pensamos no ego, descobriremos que tendemos a pensá-lo como existindo intrinsecamente, independente da mente e do corpo. E ainda assim, quando procuramos localizá-lo, ele nos engana. O Buda ensinou que não existe tal ego e que a nossa crença em um ego independente é a causa que está na raiz de todos os sofrimentos.
Entre as muitas religiões diferentes, um grupo não aceita nenhuma vida após a morte e um grupo aceita. Aquelas que aceitam a vida após a morte podem ser divididas em dois grupos: um afirma que as ilusões e as máculas da mente podem ser eliminadas e purificadas, enquanto o outro acredita que não. Este último grupo afirma que, enquanto a mente existe, nós nunca podemos purificá-la e separá-la das suas ilusões. Conseqüentemente, a eliminação da ilusão significa que a própria mente deve ser eliminada. No grupo que acredita que a mente pode ser finalmente separada das suas máculas e ilusões —isto é, que acredita no nirvana —, algumas identificam o nirvana como uma espécie de lugar que é totalmente livre de sofrimentos, um local agradável em um domínio sublime. Outras identificam o nirvana como o estado da mente no qual as ilusões estão totalmente dissolvidas na realidade. O nirvana existe na mesma base da própria mente. Esta é a visão budista.
Para entender a primeira verdade, a do sofrimento, a pessoa deve meditar sobre o sofrimento. Nós nos vemos como a coisa mais preciosa do universo e nos tratamos como se fôssemos mais preciosos do que um Buda. Porém, esse tipo de apego ainda não levou à perfeita felicidade. Desde o início dos tempos, temos atravessado o ciclo de existência e tido um número infinito de vidas. Da infância até agora, passamos por altos e baixos, por todos os tipos de frustrações e confusões. As nossas vidas estão cercadas de problemas, sofrimentos, aflições e frustrações. Finalmente, esta vida irá terminar com a morte e, depois daquilo, não temos nenhuma certeza de para onde ela irá nos levar. Realmente, devemos examinar se existe uma maneira de nos livrarmos desta existência insatisfatória. Se a vida surgisse independente de causas e condições e terminasse sem continuidade futura, nós não teríamos como escapar. Se aquilo fosse verdade, deveríamos viver segundo princípios hedonistas. Porém, sabemos que o sofrimento é algo que realmente não desejamos e que, se for possível nos libertarmos totalmente dele, vale a pena alcançarmos esta liberdade.
O que nos ata ao ciclo de existência e sofrimento são as ações kármicas do corpo, da fala e da mente. Como sabemos, mesmo em um instante, podemos acumular estas ações e aquele instante pode nos atirar em um domínio inferior. Este cativeiro está enraizado na mente indômita e é causado pela nossa própria ignorância, pela nossa própria compreensão errônea do ego. Esta noção instintiva sobre um tipo de ego independente e isolado nos induz a nos entregarmos a todo tipo de ações negativas, o que resulta em sofrimento. Esta atitude
egoísta há muito tempo tem sido o nosso mestre; sempre obedecemos às suas ordens. Devemos compreender que não nos beneficiamos seguindo os seus conselhos. Enquanto fizermos isso, não existe nenhuma chance de felicidade. Nesta conjuntura, devemos examinar se é ou não possível superar esta ilusão.
A própria experiência do nascimento é dolorosa tanto para a mãe quanto para a criança. Depois que nascemos, a ilusão tem um controle instintivo sobre os nossos corpos e as nossas mentes, impedindo que a mente se dirija para a prática do Dharma. Os nossos próprios corpos tornam-se causas para o surgimento de ilusões. Por exemplo, quando o corpo está enfraquecido por determinadas doenças, você fica aborrecido e, quando está saudável, você tem apego. O nascimento é inevitavelmente seguido pela morte e a morte é seguida por um outro renascimento. Se isso não fosse o bastante, o próprio renascimento serve como a base para sofrimentos adicionais, porque este renascimento propícia a estrutura para ilusões adicionais, as quais motivam novamente as ações negativas que têm conseqüências kármicas.
Esta existência humana, que consideramos preciosa, surgiu de algo asqueroso. Os nossos corpos são produzidos pela combinação dos fluidos regenerativos dos pais, o sêmen e o óvulo. Se encontrarmos sangue e sêmen em um pano ou uma gota derramada no chão, sentimos repulsa. Contudo, continuamos a adorar os nossos próprios corpos. Tentamos cobrir os nossos corpos com roupas elegantes e disfarçar o cheiro com perfume. Os nossos pais também surgiram das mesmas substâncias, assim como os pais e os avós deles. Se remontarmos à sua origem, veremos que o corpo é o produto final de todas essas substâncias impuras. Se formos um passo adiante, podemos ver que o corpo é como uma máquina para a produção de excremento e de urina. Quando você vê minhocas que comem lama por uma ponta e depois a excretam pela outra, é realmente muito deplorável. O mesmo é verdadeiro com os nossos próprios corpos; continuamos a comer e a excretar. Um corpo assim não é para ser tratado com carinho.
Além disso, os seres humanos têm o potencial de ameaçar a própria sobrevivência da terra. Em conseqüência das suas mentes indômitas, pessoas como Stalin, Hitler e Mao não apenas acumularam estoques ilimitados de ações negativas como também afetaram as vidas de inúmeras pessoas, causando angústia, sofrimento e tormento.
Depois, há o sofrimento do envelhecimento. O envelhecimento surge gradualmente; de outro modo, não seríamos absolutamente capazes de suportá-lo. Quando envelhecemos, perdemos a flexibilidade que tínhamos quando éramos jovens; não conseguimos mais digerir os alimentos que gostávamos. Ficamos incapazes de nos lembrarmos dos nomes das pessoas e das coisas que costumávamos recordar vivamente. Os nossos dentes caem gradualmente, assim como o nosso cabelo e perdemos a nossa visão e a nossa audição. Finalmente, atingimos um estágio de declínio no qual as pessoas começam a achar repulsivo o simples fato de olharem para nós. Quando você atingiu um estágio no qual precisa da ajuda de outras pessoas, elas se afastarão de você.
A seguir, existe o sofrimento da doença. O sofrimento físico e a ansiedade mental aumentam e você precisa passar dias e noites abatido pela enfermidade. A doença o impede de comer o alimento do qual você realmente gosta e de fazer as coisas que gosta.
















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